SANTIAGO – Uma década depois do início da transição democrática e duas décadas depois do fim dos anos negros da repressão militar, o Chile tem um encontro marcado com seu passado neste domingo.
Nas ruas, nos parques e praças de Santiago vão confrontar-se duas visões opostas sobre o que fazer desse passado: celebrá-lo ou promover um acerto de contas. Entre os dois pólos, como sempre, estará a chamada maioria silenciosa: aquela que quer apenas esquecer. E olhar para o futuro.
O motivo desse confronto é a entrega do comando do Exército pelo general Augusto Pinochet, previsto para terça-feira, e sua posse imediata no Senado, com cadeira vitalícia.
Repúdio – A Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos e o Movimiento por la Dignidade Nacional, com outros grupos de defesa dos direitos humanos e parlamentares que apóiam o governo, convocaram manifestações de repúdio ao ingresso do ex-ditador no Senado, o que lhe valerá imunidade parlamentar.
Assim, o general saltará do abrigo do comando do Exército para a proteção legal do Parlamento – e para sempre. Os pinochetistas – que não são poucos, sobretudo na classe média – sairão às ruas para demonstrar seu apreço pelo general, comumente explicado pelo êxito do ditador na modernização do Chile e pela estabilidade que ele assegurou, fosse qual fosse o preço, nos anos que governou, de 1973 a 1990.
O benefício do cargo vitalício no Senado está previsto na Constituição de 1980 – promulgada por Pinochet -, para os que tenham ocupado o cargo de presidente por mais de seis anos. O general é o único que preenche esse requisito.
Biônicos – O mandato de pr
esidente eleito, introduzido pelas mudanças constitucionais negociadas com a oposição na segunda metade dos anos 80, é de seis anos. Mas o primeiro presidente eleito, Patrício Aylwin, ocupou o cargo por apenas cinco anos (1990-95) – o que também estava previsto.
Depois de Pinochet, o primeiro a beneficiar-se desse dispositivo será o atual presidente, Eduardo Frei – isto é, se o dispositivo não for eliminado antes. Hoje, é considerado uma aberração pelos setores chamados democráticos no país, incluindo o presidente e a frente de quatro partidos que o apóia, a Concertación. Junto com a figura do senador vitalício há outra, ainda mais repudiada por esses setores: a dos senadores “institucionais”, mais conhecidos como biônicos.
Esses senadores, cujo mandato é de oito anos, são nove: dois ex-ministros da Corte Suprema, um ex-ministro de Estado, um ex-reitor de universidade estatal, os ex-comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, o ex-diretor-geral dos Carabineros e um ex-“controlador” da república – mistura de procurador-geral com ministro do Tribunal de Contas.
Esses nove atuais senadores biônicos são advindos da ditadura militar e leais a Pinochet. O Senado tem 48 cadeiras. Pinochet ocupará a 49.ª.
Nas eleições de dezembro, a Concertación elegeu apenas 20 senadores. A oposição de direita elegeu 16. Os outros são independentes e oposicionistas de esquerda. Conclusão: somados aos biônicos e liderados pelo novo senador Pinochet, os direitistas ficarão muito perto da maioria absoluta. Podem não dominar o Senado, mas não deixarão passar nada do governo, se não quiserem.
Daí se começa a entender que o incômodo da Concertación com os biônicos e com o novo senador vitalício não é apenas por questão de princípios democráticos. É, também, uma questão real de poder. Não por acaso, o movimento contra o ingresso de Pinochet no Senado surgiu só depois das eleições parlamentares de 11 de dezembro, embora já estivesse previsto desde a Constituição de 1980 – quando Pinochet completava sete anos de governo.
Alerta – A Concertación, que antes já não controlava o Senado, teve cinco pontos porcentuais a menos de votos para deputados do que nas eleições anteriores e perdeu também a maioria absoluta na Câmara. O alerta soou.
Expoentes da Democracia Cristã (de Aylwin e Frei) e do Partido Socialista, juntos na coalizão, pressentiram que era preciso resgatar sua identidade.
“Foi assim que, impedir Pinochet de ingressar no Senado, tornou-se bandeira de luta”, explica uma fonte próxima ao governo.
Mas, nem por isso, o presidente Eduardo Frei apóia o movimento – que inclui também ações na Justiça e petições no Congresso.
Num pronunciamento contundente, feito na quinta-feira, o presidente abandonou o mutismo que vinha mantendo desde o início da crise, há três meses, e condenou a animosidade contra o ex-ditador.
Frei deixou claro que compreende perfeitamente as razões do repúdio ao ditador: “Mais do que qualquer um, sinto as injustiças e as violações aos direitos humanos ocorridas sob o regime autoritário, e compartilho plenamente o sentimento dos que anseiam que nosso Congresso Nacional esteja integrado única e exclusivamente por representantes eleitos pelo povo”,
disse Frei. “Ao mesmo tempo, minha obrigação como chefe de Estado é atuar a todo momento sobre o alicerce constitucional, que jurei respeitar e fazer respeitar.”
Dom Quixote – Depois de deixar claro, que usará sua autoridade de chefe de Estado e de governo para garantir a continuidade da transição, que poderia ficar ameaçada num eventual confronto do governo com as Forças Armadas, que respaldam Pinochet, o presidente propôs: “Nossa responsabilidade é encontrar soluções que olhem para o futuro e não nos deixar levar pelos antagonismos do passado.” Nessa frase está contida a estratégia de marketing político adotado por Frei, chama a atenção uma fonte com livre acesso ao governo. Nos últimos dias, enquanto a crise chegava a seu ápice, o presidente recusava-se a falar sobre ela e era visto inaugurando escolas e hospitais.
Uma vez que, como presidente, ele não pode posar de Dom Quixote para enfrentar Pinochet, como fazem seus colegas de partido, a idéia dos assessores de Frei é distanciá-lo desses outros políticos, imprimindo a imagem do governante que “faz”, que se preocupa com os problemas concretos da população em vez de se engajar em disputas políticas. “Nesse espírito, mostrarei ao país, em breve, meu plano de ação para este ano”, foi uma das últimas frases do discurso .
Poder – Nessa questão toda, uma pergunta que surge naturalmente é a seguinte: que poder de fato o general Pinochet ainda tem? “Tem o poder para fazer o que está fazendo”, responde um diplomata creditado em Santiago e também com largo acesso ao governo.
Para que seu sucessor no comando do Exército fosse o general Ricardo Izurieta, como quis Pinochet, nada menos que seis generais tiveram de ser mandados para a reserva: Izurieta era o sétimo na hierarquia.
Em janeiro, o então ministro da Defesa, Raúl Troncoso, recusou-se a promover um oficial de uma lista enviada por Pinochet. O oficial tinha sido membro da Dina, a odiada polícia secreta do regime militar. O ministro caiu e o oficial ganhou sua promoção.