BOGOTÁ – Programas de humor que satirizam a figura caricatural do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, têm proliferado nos países de língua espanhola da América do Sul. Seus conceitos arcaicos de “revolução” e “socialismo”, seus rompantes contra os “conspiradores”, seu simulacro de Hugo Chávez, que segundo ele lhe aparece como um passarinho, seus cacoetes autoritários e populistas causam gargalhadas nas audiências das jovens democracias da região, que vêem o caudilhismo como uma grotesca curiosidade do passado.
O descolamento entre a Venezuela e a maioria dos países sul-americanos — a Bolívia e, em menor grau, o Equador são as exceções — se tornou ainda mais agudo na semana que passou, com as declarações bombásticas da procuradora-geral destituída da Venezuela, Luisa Ortega Díaz.
Durante encontro de procuradores do Mercosul em Brasília, Ortega afirmou ter provas de que Diosdado Cabello, vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela e um dos homens fortes do regime, recebeu US$ 100 milhões em propina, e que Maduro teria um esquema próprio, por meio de uma empresa mexicana em nome de laranjas e da rede de distribuição de alimentos do país.
Ortega disse que entregaria as provas a autoridades dos EUA, Espanha e Colômbia, “para que investiguem, porque na Venezuela não há justiça, é impossível que se investigue qualquer ato de corrupção ou narcotráfico”. Acrescentou que vem sendo ameaçada de morte. E voltou para seu exílio em Bogotá.
A procuradora já havia feito denúncias dessa natureza na Venezuela, antes de fugir no dia 18 de Caracas com o marido, o deputado Germán Ferrer, em um barco para Aruba, de onde voaram para a Colômbia. Mas não havia ainda fornecido nomes de empresas.
Ortega passou a ser acusada de corrupção, envolvimento com narcotráfico e violação dos direitos humanos depois que rompeu com o regime, e estava impedida de deixar a Venezuela. O regime venezuelano reagiu emitindo ordem de captura do casal via Interpol, mas o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, já disse que Ortega está sob a proteção de seu governo.
“A Venezuela vai solicitar ante a Interpol um código vermelho a essas pessoas envolvidas em delitos graves”, disse Maduro. “Andas com a oligarquia colombiana, com os golpistas brasileiros. Diz-me com quem andas que te direi que és.” Segundo o presidente, Ortega “estava trabalhando há tempo com os Estados Unidos”, que “chantagearam o ex-deputado Germán Ferrer (também destituído pelo regime) porque descobriram contas dele no mundo inteiro”.
A Venezuela cortou o sinal das duas principais emissoras de televisão colombianas de notícias, a RCN e a Caracol, nos serviços de TV a cabo do país, por terem transmitido as declarações da procuradora em Brasília, o que motivou um protesto do governo em Bogotá. Críticas e acusações contra o regime como as que Ortega fez não são toleradas, sobretudo nos canais de TV, na Venezuela.
Mas o governo não calou — ainda — a Assembleia Nacional (AN), de maioria oposicionista, embora a Constituinte, dominada pelos chavistas, tenha assumido o seus poderes. Em uma sessão na quinta-feira para debater as denúncias da procuradora, cuja destituição a AN não reconhece, o deputado Juan Guaidó afirmou que os contratos da Odebrecht com o governo venezuelano somam US$ 22 bilhões, referentes a sete obras inacabadas, que incluem uma hidrelétrica, ferrovias e três pontes.
A segunda ponte sobre o Lago Maracaibo, por exemplo, tem sobrepreço de 3.000%, 11 anos de atraso e apenas 36% executados. De acordo com o deputado, o montante representa mais do dobro das reservas internacionais do empobrecido país, dono das maiores reservas de petróleo do mundo, e seria suficiente para pagar toda a dívida comercial da Venezuela.
Guaidó disse que a ficha da Drose Gran Limited, a empresa mexicana contratada pelos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap), que segundo Ortega pertence de fato a Maduro, desapareceu do Registro Nacional de Fornecedores. “O sistema de justiça está podre e o governo trafica com a miséria”, constatou. Os deputados decidiram solicitar as informações a Ortega para prosseguir nas investigações.
O substituto da procuradora-geral, Tarek Saab, declarou que as denúncias de sua antecessora não têm validade, e que a Colômbia se tornou o “epicentro” de uma suposta “conspiração” internacional contra a Venezuela. Os dois países têm uma fronteira de 2.200 km e estão entre os principais parceiros comerciais um do outro.
Não é a primeira vez que o chavismo bate cabeça com o governo colombiano. Em novembro de 2007, Hugo Chávez chamou seu embaixador em Bogotá de volta e anunciou o “congelamento” das relações com a Colômbia.
O então presidente venezuelano vinha mediando a troca de reféns por guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) presos. Ele perguntou ao então presidente Álvaro Uribe se podia conversar diretamente com o comandante do Exército colombiano, general Mario Montoya. Uribe pediu a ele que não fizesse isso, e que mantivesse os contatos no nível presidencial.
Entretanto, Chávez telefonou para Montoya e tentou convencê-lo a retirar o Exército de uma área no centro-sul da Colômbia, para permitir a negociação com as Farc. Uribe anunciou então o fim da mediação de Chávez, acusando-o de não estar preocupado com o destino dos reféns, mas sim de querer instalar na Colômbia um governo sob influência das Farc. Chávez reagiu chamando Uribe de “mentiroso” e finalmente “congelando as relações”.
Na época, Maduro era ministro das Relações Exteriores. Ele participava de um programa de TV ao vivo quando Chávez anunciou o “congelamento”. O entrevistador lhe perguntou sobre a iniciativa, e visivelmente Maduro não sabia do que se tratava: não tinha sido sequer informado da decisão pelo presidente.
Agora, enquanto o regime venezuelano se blinda contra as revelações da Lava Jato, na Colômbia, não se passa um dia sem que elas tragam novos desdobramentos. Segue apenas um breve resumo da última semana.
Na quarta-feira, a Justiça ordenou a prisão de José Elías Melo Acosta, ex-presidente da Corficolombiana, maior instituição financeira da Colômbia. O ex-diretor da Odebrecht Luiz Antonio Bueno Júnior declarou que Melo tinha conhecimento da exigência de US$ 6,5 milhões em propina por parte do então vice-ministro dos Transportes, Gabriel García Morales, para contratar a empresa para a construção do segundo trecho da rodovia Rota do Sul, em 2008.
O juiz acatou a argumentação do Ministério Público, de que Melo poderia prejudicar as investigações. Pelo mesmo motivo, Morales está preso desde janeiro. O caso se deu quando Uribe era presidente.
Na quinta-feira, foi a vez de o presidente da Agência Nacional de Infraestrutura (ANI), Luis Fernando Andrade, pedir demissão. Andrade, que estava no cargo havia seis anos, é acusado de ter autorizado em 2014 um aditivo na obra da rodovia Ocaña–Gamarra em troca de uma propina de US$ 4,6 milhões, paga ao ex-senador Otto Bula.
Tanto García Morales quanto Bula se tornaram delatores. No total, 12 pessoas já foram detidas na Colômbia desde dezembro do ano passado, por causa do escândalo da Odebrecht. A primeira condenação saiu em julho, do empresário Enrique Ghisays Manzur, a sete anos de prisão. Ele confessou ter lavado os US$ 6,5 milhões recebidos por García Morales.
Em toda a América Latina, o escândalo envolve o pagamento de US$ 788 milhões em propinas em 12 países da América Latina.
Dois ex-presidentes, Andrés Pastrana e Álvaro Uribe, pediram na sexta-feira que sejam investigadas acusações de financiamento ilegal da campanha para a reeleição de Juan Manuel Santos, em 2014, pela Odebrecht.
Em carta dirigida ao advogado-geral da União, ao procurador-geral da República, à Corte Suprema de Justiça e à Comissão de Investigações e Acusações da Câmara dos Deputados, Pastrana e Uribe citam supostas doações ilegais de US$ 3 milhões para o primeiro turno, de quase US$ 2 milhões para o segundo e ainda de outros US$ 2 milhões para pagar dívidas da campanha.
Eles detalham nomes de empresas e de pessoas que teriam intermediado as propinas, com base em confissões do ex-vice-ministro dos Transportes.
O tema só tende a esquentar, conforme se aproximam as eleições para o Congresso, em março, e para a presidência, em maio. García Morales afirmou em depoimento que falta muito para vir à tona nesse escândalo na Colômbia.
Essa é a única certeza com relação à Lava Jato, nos países onde as instituições têm independência suficiente para investigar. Não é o caso da Venezuela, onde o chavismo não é uma piada, mas uma dura realidade.
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