Guerra suja colombiana atinge toda a sociedade

BOGOTÁ — Eram 8 da noite de sábado, dia 17. O bairro de María Eugenia, na cidade de Barrancabermeja, norte da Colômbia, promovia um animado bazar para arrecadar fundos.

De repente, cerca de 50 homens armados chegaram em quatro caminhonetes. Alguns estavam encapuzados e iam indicando quem deveria ser levado. Os que resistiam eram executados ali mesmo. A mesma cena ocorreu naquela noite em outros bairros da cidade. No total, 11 pessoas foram mortas e 25 seqüestradas.

O cativeiro durou três semanas. Nesse período, os parentes dos reféns apareciam periodicamente na imprensa, assegurando que eles não tinham ligação com a guerrilha. Na quinta-feira, no entanto, as Autodefesas de Santander, um dos grupos paramilitares que enfrentam as frentes guerrilheiras na Colômbia, comunicaram o julgamento sumário e a execução dos 25 reféns, cujos corpos foram cremados.  

As vias de acesso a Barrancabermeja, a capital do petróleo da Colômbia, estão fechadas por barricadas, erguidas por um grupo de manifestantes.

Nenhum veículo entra ou sai. O comércio está fechado. De maneira silenciosa e amarga, a provinciana cidade natal do candidato do governo a presidente, Horacio Serpa, isola-se do resto do país para exprimir sua dor, sua fúria, sua desilusão.  

As testemunhas do bazar de María Eugenia ressaltam um detalhe perturbador:

minutos antes da chegada dos paramilitares, a polícia e o Exército patrulhavam a área. Os paramilitares barbarizaram a cidade durante três horas, sem ser molestados. É aqui que a guerra civil colombiana assume os contornos de uma guerra suja, na qual estão envolvidos, por omissão ou participação, os mais diversos setores — militares e civis, esquerda e direita, Estado, políticos, empresários e camponeses.

Nas áreas conflagradas, que se espalham por todo o país, os colombianos estão entre a cruz e a espada. Os guerrilheiros exigem apoio logístico. Os paramilitares punem quem o fornece. E vice-versa.

As forças paramilitares, que hoje são responsáveis pela grande maioria das atrocidades cometidas no país, provêm de grupos armados para segurança privada legalizados e incentivados pelo governo. Tudo começou com um decreto de 1965, que autorizava a criação das “autodefesas camponesas”, para fazer frente aos guerrilheiros que assassinavam, seqüestravam e extorquiam os produtores. Em 1989, as “autodefesas” foram declaradas ilegais, devido às atrocidades que passaram a cometer contra suspeitos de apoiar a guerrilha e a vínculos com o tráfico.

Curiosamente, novo decreto, de 1994, previa a criação de “serviços especiais de vigilância e segurança privada”. Surgiam as cooperativas Conviver, que, ao contrário do que sugere o cândido nome, degeneraram-se rapidamente nos grupos paramilitares tal como são conhecidos hoje. Do território colombiano, 40% está ocupado, seja pela guerrilha, seja pelos paramilitares.

Os dois grupos formam Estados dentro do Estado. Controlam as prefeituras, exercem poder de polícia e arrecadam impostos, na forma das chamadas “vacinas”, que são as taxas cobradas de fazendeiros e comerciantes.

“Governam”, resumiu o reverendo Javier Sanín, decano da Faculdade de Ciências Políticas da Pontifícia Universidade Javeriana, em entrevista ao Estado.

Segundo um informe do serviço de inteligência militar publicado no ano passado, 650 prefeitos, ou seja, mais da metade do país, tinham relações diretas ou colaboravam com a guerrilha. Um relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ao citar esse informe, observou que muitos prefeitos interpretaram sua divulgação como ameaça. Isso porque o Exército vive sob contínua suspeita de envolvimento com os paramilitares. No mês passado, em reação a um relatório do embaixador americano na Colômbia, Myles Frechette, o Exército desativou as Brigadas 20, divisão de inteligência acusada de prestar apoio aos paramilitares.

Tanto grupos guerrilheiros quanto paramilitares se alimentam do narcotráfico, ao qual vendem proteção, além de assaltos a bancos e seqüestros. Esses três pilares — narcotraficantes, paramilitares e guerrilheiros — estão solidamente apoiados em fatores sócio-econômicos.

As plantações de coca e de papoula não são apenas mais rentáveis que os cultivos convencionais, como milho e algodão. Podem ser as únicas viáveis economicamente, devido à falta de apoio ao pequeno agricultor, castigado por juros altos, problemas de escoamento da produção e falta de competitividade diante de produtos importados.

Segundo a cientista política Consuelo Ahumada, especialista em reforma do Estado, a abertura comercial, iniciada pelo presidente César Gaviria (1990-94) e o “desmantelamento” da rede de assistência ao pequeno agricultor, na forma de créditos e de compras das colheitas, jogaram os camponeses nas mãos dos narcotraficantes e respectivos braços armados.

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), por exemplo, recrutam adolescentes por um soldo inicial de 350 mil pesos (US$ 270), enquanto o salário mínimo, que nas zonas mais pobres poucos ganham, é de 184 mil (US$ 141).

Além disso, segundo o reverendo Javier Sanín, os guerrilheiros gozam de respaldo político em algumas áreas do país, onde substituem o Estado como provedor de segurança e assistência social. Tanto Sanín quanto Ahumada não vêem chances de a guerrilha se empenhar efetivamente num eventual processo

de paz, por considerarem que ela está numa posição de força.

Na campanha para o primeiro turno da eleição presidencial, realizado dia 31, os três principais candidatos à presidência prometeram obter a paz. Essas expectativas continuam sendo alimentadas agora, na corrida para o segundo turno, que será disputado, no dia 21, entre o liberal Horacio Serpa e o conservador Andrés Pastrana, da oposição.

Num lance de sarcasmo, um canal de televisão mostrou na quinta-feira o então candidato Samper prometendo, em junho de 1994, durante debate eleitoral justamente com Pastrana: “Eu vou conseguir a paz.” Frases semelhantes são repetidas à exaustão pelos candidatos de agora.  

O entrecruzamento de fatores sócio-econômicos e políticos torna a violência na Colômbia um problema mais complexo do que políticos em campanha estão preparados a admitir. “Este país tem demonstrado uma enorme capacidade para o mal”, constata o reverendo Javier Sanín.

Para explicar as raízes da guerra civil, Sanín, Ahumada e outros cientistas políticos sempre mencionam o problema da exclusão política. A guerrilha do M-19, agora tornada inexpressivo partido político, as Farc e o Exército de Libertação Nacional (ELN) cresceram à sombra da chamada Frente Nacional, pacto entre os Partidos Liberal e Conservador (entre 1958 e 1984), pelo qual os dois repartiam o poder, sem a participação de nenhum outro setor político.

O próprio pacto foi precedido de uma explosão de violência, que demonstra que as raízes são mais profundas. Em 1948, o candidato favorito à presidência, o liberal Jorge Eliezer Gaetán, foi assassinado. Os liberais saíram às ruas, em batalhas campais contra os conservadores. Em uma semana, 300 mil pessoas morreram. A guerra civil durou dez anos.

Quanto à outra vertente da violência, a criminalidade, sua proliferação é explicada, em primeiro lugar, por razões geográficas. As fronteiras da Colômbia são especialmente difíceis de guardar, ponderou ao Estado o comandante de operações da Polícia Nacional, general Alfredo Salgado: a oeste, está o Pacífico, ao norte, o Caribe, e a leste, a Amazônia. Desde os tempos coloniais, a Colômbia  consolidou-se como rota do contrabando.  A geografia, a história e a economia parecem conspirar contra a paz na

Colômbia. Entretanto, nem todos estão pessimistas. A chefe do Alto Comissariado da ONU na Colômbia, a espanhola Almudena Mazarrasa, disse ao Estado que existem motivos para acreditar nas chances do processo de paz, depois que assumir o novo presidente, em agosto. “Os grupos guerrilheiros informaram  que estão dispostos a negociar com o próximo presidente”, lembrou a alta-comissária, destacando o pré-acordo firmado entre o ELN e o governo, em fevereiro, em Madri.

Mazarrasa argumenta que “nunca antes” houve tanta pressão, por parte da sociedade colombiana, contra a guerrilha, lembrando as eleições departamentais (estaduais) e municipais de outubro, em que 10 milhões de eleitores colombianos — metade do total — desafiaram o boicote armado e saíram para votar, atendendo à exortação de um movimento chamado de Mandato para a Paz.

Também pode funcionar como fator de pressão contra a guerrilha a aparente mudança de política dos Estados Unidos. Em vez de acossar a Colômbia por sua suposta complacência diante do narcotráfico, o governo americano passou a enfatizar a cooperação e a enviar sinais de que está disposto a ajudar, ainda que indiretamente, no combate à guerrilha, entendida como suporte militar ao crime organizado.

Essa política é respaldada pela comunidade internacional. Às vésperas da assembléia-geral extraordinária da ONU sobre drogas, que começa amanhã em Nova York, o encarregado do organismo nesse tema, Nino Arlacchi, disse que “a grande estratégia contra o narcotráfico” consiste na “iniciativa de paz” entre o governo colombiano e a guerrilha.

 

“Se acabar o narcotráfico, acaba a guerrilha”, sustenta o general Salgado, da Polícia Nacional. “O problema real de uma negociação na Colômbia é que tudo está traspassado pelo narcotráfico”, avança o reverendo Sanín. “Se a guerrilha está envolvida com o nacrotráfico, o governo está mais ainda.” Um novo governo será eleito no dia 21 e uma nova política da comunidade internacional para a Colômbia será consumada esta semana. A combinação entre política interna e externa determinará o destino do país.

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