Em entrevista exclusiva ao ‘Estado’, ex-ministro colombiano conta a sua vida de refém das Farc e a sua fuga espetacular
CARTAGENA – Ao longo de seis anos no cativeiro, o ex-ministro Fernando Araujo Perdomo ouviu muitas vezes dos guerrilheiros: ‘Ninguém escapa das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.’ E isso era verdade. Até o dia 31 de dezembro, quando o franzino engenheiro de 51 anos aproveitou um ataque – destinado a resgatá-lo – de comandos da Marinha apoiados por helicópteros para rastejar de volta para a liberdade.
Único homem a escapar das Farc e continuar vivo, Araujo coleciona, depois de seis anos de convívio, um acervo valioso de informações sobre os guerrilheiros, sobre sua condição militar, sua moral, seu armamento, sua rotina nos acampamentos e suas aspirações políticas.
O ex-ministro do Desenvolvimento se reuniu com o presidente Álvaro Uribe no dia 22, durante uma hora e quinze minutos. O presidente, engajado numa ofensiva contra as Farc, fez-lhe muitas perguntas sobre questões militares. Araujo esteve também por uma hora e meia com o general Alfredo Padilla de León, comandante das Forças Armadas, com os chefes de cada Arma e os comandantes operacionais de várias unidades da Marinha.
O engenheiro e empresário é um arquivo vivo sobre a guerrilha. Para manter-se assim, está sob proteção das autoridades, e vive no hotel administrado por sua família, proeminente em Cartagena, onde recebeu o Estado para quatro horas de entrevista exclusiva. Nela, fala do cativeiro, de sua guerra silenciosa contra o desespero, de como aprendeu a passar o tempo e a ‘enganar-se’.
Cerebral, objetivo, preciso no relato e contido nos gestos, Araujo não sorriu nas três primeiras das quatro horas de entrevista, embora seus olhos brilhassem ao falar da esposa que o trocou por outro, do reencontro com os quatro filhos e os pais. No final, já dava risada, incrédulo da própria aventura e orgulhoso de seu feito.
A CAPTURA
Passava das 18 horas do dia 4 de dezembro de 2000. Araujo tinha terminado de fazer jogging e estava chegando a seu prédio, no bairro de Bocagrande, o mais elegante de Cartagena. A médica Mónica, com quem se casara havia sete meses, completava 29 anos naquele dia, e iam receber convidados em casa. Quando passou sob a sombra de uma seringueira vizinha ao prédio, um homem muito mais forte que ele o abraçou por trás. Outro o agarrou pela frente. ‘Esperneei, tentei me soltar, gritei pedindo socorro’, recorda.
Mas o enfiaram à força dentro de uma Blazer verde de vidros escuros que estava estacionada com a porta aberta. Mais tarde, ele se lembraria de já ter visto a Blazer e os homens. Estava sendo seguido havia dois meses. Forçaram Araujo a se deitar no chão e sentaram-se no banco de trás. Colocaram uma pistola na sua cabeça e uma submetralhadora Uzi em seu peito. Uma mão tapou seus olhos.
Araujo não entendeu o que se passava. Não tinha inimigos conhecidos, nunca o tinham ameaçado, sua situação econômica, de empresário criador de jacarés cuja pele vendia para Cingapura, ‘era de muitas dívidas’. Não pensou em seqüestro. Pressentiu que iam matá-lo, em razão de um escândalo de corrupção no qual fora envolvido quando ministro do Desenvolvimento (entre agosto de 1998 e agosto de 1999) do então presidente Andrés Pastrana.
Sem enxergar nada, ia mentalmente acompanhando o trajeto. Entre 19 e 20 horas, saíram da estrada e entraram numa área rural e montanhosa, por uma trilha de mulas. Quatro guerrilheiros os esperavam. Começaram a caminhar, Araujo com uma fita adesiva amarrada na mão direita, que um guerrilheiro ia segurando. Quando dois deles se adiantaram, Araujo tentou empurrar o que o segurava num barranco, mas foi ele quem acabou caindo. O guerrilheiro sacou a pistola, mirou na cabeça de Araujo e apertou o gatilho. Mas ela estava travada. Caminharam até a manhã do dia seguinte, quando chegaram a um acampamento da guerrilha.
O CATIVEIRO
Por causa da tentativa de fuga, nos sete primeiros meses, Araujo ficou preso na cintura com uma corda de dois metros, amarrada a uma árvore. O acampamento consiste em redes amarradas nas árvores, cobertas com lonas quando chove, e protegidas por mosquiteiros. Mudavam de lugar, em média, a cada duas semanas, quando acabava a água ou os militares os fustigavam. Os que se encarregavam diretamente de sua vigilância eram 16. Mas havia um grupo de apoio, talvez com 50 guerrilheiros.
Em julho de 2001, Araujo foi transferido para os Montes de Maria (150 quilômetros ao sul de Cartagena), onde as Farc têm uma presença muito mais forte. Foram numa camionete, pela estrada, em duas horas de viagem. Passaram por um bloqueio da polícia. Os policiais o viram, mas não o reconheceram. ‘Eu tinha esperança de que nesse dia podia escapar. Mas não encontrei no policial nenhum gesto de cumplicidade. Não vi oportunidade de pedir ajuda. Teriam me matado.’
Em Montes de Maria, já não ficava amarrado a um tronco, mas seguia confinado por linhas invisíveis de 3 metros por 3, em torno de sua rede. Durante a noite, os guardas se alternavam em turnos de duas horas. O acampamento tinha várias sentinelas. Um guerrilheiro, chamado de ‘relevante’, passava para verificar se não estavam dormindo.
Todos os dias, os guerrilheiros se levantam às 4h30 e se colocam em posição defensiva, pois acham que é o horário provável de um ataque. Ficam entrincheirados até as 6 horas. Então, tomam um café e vão ouvir uma palestra de doutrinamento marxista. Entre 8 e 9 horas, tomam o café da manhã. E vão fazer suas atividades de acampamento: limpam fuzis e munição, costuram e lavam roupa, remendam os sapatos, buscam lenha e água ao redor ou comida nos povoados, cavam buracos sanitários e fazem fogueira.
Os guerrilheiros se alternam para cozinhar. Só quando são punidos é que cozinham uma semana, um mês ou até mais, dependendo da gravidade da falta. Uma falta pode ser um casal ficar junto sem estar autorizado; dormir de guarda; desobedecer uma ordem; responder rispidamente a um chefe. A mais grave é tentar escapar, que eles pagam com a morte.
Araujo despertava às 4 horas e até as 5h30 fazia exercícios de flexão e corrida no mesmo lugar, para se manter em forma para as freqüentes caminhadas na selva montanhosa, nas mudanças de acampamento, e para uma eventual fuga. Às 5 horas, ligava um radinho Sony de ondas curtas, que o guerrilheiro Zorro lhe havia presenteado, para ouvir notícias e mensagens de sua família.
Na Colômbia, por causa do grande número de seqüestrados – 57 reféns políticos, como Araujo, para serem trocados por 500 guerrilheiros presos, e 3 mil reféns comuns, para exigir resgate -, as rádios têm programas para as famílias enviarem notícias aos reféns. Na única carta à família, ele disse que ouvia a RCN, das 5 às 8 horas. Ao longo dos seis anos, também gravou três vídeos.
Anotava as mensagens em cadernos que os guerrilheiros lhes davam. E as respondia, como se estivesse falando com seus parentes. Dava parabéns aos filhos quando iam bem no colégio, dizia que os queria muito. Falava de si mesmo: se estava triste, tranqüilo, se havia muitos mosquitos, o que achava de negociações para a troca de reféns, se tinha havido ataques militares. Se morresse no cativeiro, tinha a esperança de que o caderno chegasse à família.
O TEMPO
Das 8 às 9 horas, Araujo comia o café da manhã – uma arepa (espécie de biju) assada de milho, com feijão, macarrão ou lentilhas, e um refresco. Depois lavava as vasilhas. Daí até as 12 horas, não tinha o que fazer. ‘O primeiro trauma, para mim, foi não fazer nada.’ Desenvolveu a técnica de fazer tudo devagar, para que cada atividade se esparramasse pelas longas horas do dia. Brincava com um escorpião com um pauzinho, ou observava uma aranha tecer sua teia.
Um dia, estava lendo Robinson Crusoé, que um guerrilheiro lhe emprestara, quando viu que uma formiga atacava uma minhoca. Uma hora depois, já eram três formigas. ‘Compadeci-me da minhoca, e decidi ajudá-la.’ Jogou a minhoca para longe. Mas veio um pássaro e a comeu. ‘Quando chega a sua hora, não há o que fazer’, concluiu Araujo. ‘Nunca mais me meti nas brigas entre formigas e minhocas.’
De 12 às 13 horas, ouvia notícias enquanto almoçava sopa de mandioca, batata ou banana de fritar e algumas verduras, quando havia. ‘Depois, vinha novo período de inatividade.’ Por volta de 15 horas, tomava banho, com um balde de 20 litros, que lhe traziam com água até a metade. Tinha uma muda de roupa, e se trocava aos sábados. Quando chegava nesse horário, pensava: ‘Já ganhei o dia. É um a menos que me falta.’ Às 16 horas, sintonizava a BBC e a Rádio da Holanda. Os guerrilheiros lhe forneciam pilhas, mas às vezes escasseavam, pois as utilizavam na montagem de explosivos. Então, era preciso economizar. Às 17 horas, jantava arroz com verduras, carne (quando havia), lentilhas, milho ou feijão. Depois se preparava para dormir.
ABSTINÊNCIA
Araujo não bebe, e ficou seis anos sem sexo. ‘Encarei o tema da minha sexualidade com muita seriedade, porque pensei que seria uma questão difícil.’ De cada quatro guerrilheiros, uma é mulher. Só nos últimos dois anos foi que Araujo teve vigilantes femininas. Sempre que os comandantes notavam uma maior proximidade dos guerrilheiros com Araujo, trocavam a equipe. ‘Apesar disso, conquistei certa confiança com algumas guerrilheiras, cumprimentando-as com beijos. Mas não ia além disso.’
Aos domingos, das 18 às 20 horas, há a chamada ‘hora cultural’. Os guerrilheiros contam piadas, cantam e dançam. Para essa ocasião, algumas se maquiam. Os mais ortodoxos as criticam. Já Araujo lhes dizia que estavam bonitas. Então, quando se maquiavam, iam mostrar-lhe, para ver se ele aprovava.