Sob a aparente calma, população vive aterrorizada

Em San Vicente contam-se muitos desaparecimentos e quase ninguém tem coragem de dizer publicamente o que pensa

 

SAN VICENTE DEL CAGUÁN, Colômbia – San Vicente del Caguán é uma realidade dividida em camadas, que se vão conhecendo de maneira lenta e difícil. Passado o susto inicial diante da inusitada ausência do Estado e de estar sob controle guerrilheiro, a imagem seguinte é de tranqüilidade, confirmada nas conversas superficiais que se podem ter na rua.

“Antes, acordávamos de manhã e perguntávamos: `quem morreu ontem à noite?'”, diz Fennel Oyuela, 20 anos, aluno de um curso técnico em veterinária, referindo-se à época em que as Farc e o Exército e a polícia disputavam a influência sobre a cidade.

“Viemos com medo da guerrilha”, confessaram dois sócios numa gráfica de Florencia, reduto dos paramilitares (forças de autodefesa criadas por fazendeiros, empresários e militares, para se proteger da guerrilha), que viajaram a San Vicente a negócios. “Estamos vivendo três dias de muita calma”, atestaram, enquanto assistiam a uma partida de vôlei, na Praça da Matriz, na noite de segunda-feira.

A prisão da cidade vive constantemente vazia, à exceção de um ou outro bêbado que se excedeu na noite anterior. “Antes da criação da zona de distensão, havia muito mais violência”, afirma o comandante da Polícia Cívica, José Carlos Miranda, que, como 16 subordinados seus, são bombeiros voluntários. Outros 13 foram recrutados pelo prefeito. Os restantes 30, de um total de 60 homens, são da guerrilha.

“Agora, só há brigas entre marido e mulher e a maioria das mortes é por acidentes de trânsito”, garante Miranda. Todas as autorizações de porte de arma estão suspensas na zona de distensão. Só os guerrilheiros andam armados. Não é complicado ter de tomar a arma de alguém, estando desarmado? “Não, porque nosso trabalho é preventivo”, explica Miranda. “Pedimos que a pessoa deixe a arma em casa, antes que fique bêbado e agressivo.”

Há Polícias Cívicas também nos outros quatro municípios da zona de distensão, com soldos de 380 mil pesos (R$ 380). Miranda, que antes vivia de pintar letreiros, resume: “Para nós, a experiência está sendo positiva.”

A violência resultante do conflito entre as Farc e o Estado, obviamente, cessou. Mas a calma é aparente. Conforme os dias passam e se encontram interlocutores bem informados e dispostos a depositar confiança num forasteiro, revela-se a camada mais profunda de San Vicente.

“Isto aqui é uma bomba-relógio”, disse ao Estado uma fonte com amplo conhecimento da situação, que falou sob condição do anonimato. Essa e outras fontes desfiaram um rosário de arbitrariedades, além da mais conhecida e assumida pelas Farc – a execução de 11 acusados de pertencer à inteligência militar.

Contam-se muitos desaparecimentos, sobretudo de jovens, ou por recrutamento ou sob acusação de simpatizar com os paramilitares. Um rapaz está seqüestrado há cinco meses, por suspeita de amizade com paramilitares. Outro foi morto porque havia estado quatro anos atrás no Exército e foi reconhecido por um guerrilheiro. Tomaram o sítio de seu pai, em La Sombra (depois do acampamento do comandante Raúl Reyes), onde estava instalado havia 14 anos, e o deixaram sair só com a roupa do corpo.

A gestão de cada local na zona de distensão obedece às idiossincrasias de seu comandante. Na vereda de Betania, por exemplo, o comandante Fabio determinou que, toda vez que transferirem gado de uma propriedade para outra, uma rês deve ser por ele confiscada. As dosagens da “vacina”, como é chamado o “imposto” cobrado pela guerrilha, variam. Um grande proprietário da região, possuidor de 3 mil cabeças de gado, disse ao Estado que paga mensalmente um dólar por rês.

O Estado ouviu versões contraditórias quanto à ocorrência ou não de recrutamentos forçados. Mas o trabalho de sedução de jovens na zona de distensão é ostensivo. Um adolescente que briga com os pais, por exemplo, pode simplesmente “ir embora com a guerrilha”, que lhe oferece não só acolhida, mas uniforme, armas, a oportunidade de dirigir um carro e outros sinais de poder e status.

Os pais e familiares de vítimas só têm a Defensoría del Pueblo – espécie de ouvidoria pública dedicada a monitorar a situação dos direitos humanos – a quem reclamar. Mas o medo desencoraja muitos deles a fazê-lo. Um número indeterminado de milicianos percorre as cidades e povoados da zona de distensão, funcionando como olhos e ouvidos das Farc. A Defensoría tem procurado, sem sucesso, convencer as Farc a informar os moradores sobre quem são seus milicianos.

Um grupo de moradores em especial tem tido de esforçar-se para conter seus sentimentos. São os parentes das 7 pessoas mortas e 40 feridas na explosão de uma bomba colocada pelas Farc na praça principal da cidade, no dia 23 de fevereiro do ano passado.

Um guerrilheiro à paisana trouxe o explosivo num pacote e pediu a uma vendedora ambulante que o guardasse. Quando uma patrulha do Exército passava, a bomba foi acionada por controle remoto. A vendedora teve as pernas arrancadas do corpo. Três militares morreram. Entre os mortos, estavam também uma mãe com um bebê no colo e um menino de 14 anos. Hoje, os parentes e amigos dos mortos convivem com a idéia de estar sob o controle político-militar dos autores dos atentados.

Algumas notícias que vêm dos arredores da zona de distensão também funcionam como fator de inibição e controle. Na vereda Perlas Altas, município de Puerto Rico (Caquetá), a 45 quilômetros de San Vicente, a coluna Teófilo Forero das Farc, chefiada pelo comandante Laurentino, deteve 12 adultos e 4 crianças, numa barreira, no dia 16 de junho. As quatro crianças e um adulto foram liberados. Os outros 11 foram mortos, sob acusação de vínculos com os paramilitares. Os cadáveres nunca foram entregues.

O conceito de vinculação com paramilitares é vago e fluido. No povoado de Doncello, a pouco mais de uma hora de San Vicente, para o lado de Florencia, os guerrilheiros levaram quatro pessoas, entre elas um estudante de 19 anos. Motivo: o jovem foi visto montado numa moto que antes pertencia a um policial, de quem ele comprara. O policial foi executado.

A guerrilha não é a única preocupação dos moradores de San Vicente. Comerciantes estão sendo ameaçados, por telefone, pelos paramilitares, por estarem vendendo mercadorias para a guerrilha. O reduto mais próximo dos paramilitares é Florencia, a três horas de carro de San Vicente, já fora da zona de distensão. Os moradores temem um ataque relâmpago dos paramilitares, e mesmo um massacre, como ocorre comumente nos povoados sobre os quais eles e os guerrilheiros disputam influência. Periodicamente, os guerrilheiros realizam “batidas” em casas, hotéis, lojas e escritórios.

Antes da retirada do Exército e da polícia, os guerrilheiros não entravam no povoado de farda. Hoje, sua presença se impõe na cidade, não deixando nenhuma possibilidade aos moradores e comerciantes de decidir se querem ou não acolhê-los. “Ninguém nos consultou sobre a criação da zona de distensão”, diz o prefeito Omar García, empossado em janeiro do ano passado. “Mas estamos provando que é possível conviver em paz com a guerrilha.”

Os moradores, no entanto, preocupam-se com o estigma de região sob influência guerrilheira e as conseqüências disso para sua segurança. “Nunca fomos `coqueros’ (plantadores de coca), guerrilheiros nem paramilitares”, diz o presidente da Câmara Municipal, Cesar Augusto Monje. “Este povo está sendo injustamente estigmatizado”, completa o padre Miguel Ángel Serna.

Talvez a única pessoa bem-informada na cidade que diga publicamente o que pensa, o padre entrou em choque com a guerrilha, em abril, quando afirmou, em seu sermão da Sexta-Feira da Paixão, que “a tolerância, o amor e a paz se chocam com o mundo do marxismo, do terror e da violência”, e que preferia “ser um padre morto a subjugado pela subversão”. A guerrilha exigiu, sem sucesso, que o bispo Francisco Javier o afastasse.

 

“Somos profundamente amigos do processo de paz, mas aqui se perdeu a institucionalidade”, explicou o padre ao Estado. “Deveríamos ser regidos pela lei do Estado, não do fuzil.”

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*