Com os líderes políticos desacreditados, integrantes da classe média da capital foram às ruas espontaneamente
QUITO – O advogado Juan Carlos Andrade vem caminhando a passos firmes pela Avenida 12 de Outubro. Vestindo um terno escuro, de óculos de grau quadrados, cabelo e barba ruivos, a tez corada pelo sol da manhã, Andrade, de 37 anos, passa por entre os manifestantes e pára na frente dos 18 policiais que montam guarda na entrada da residência do embaixador brasileiro.
“Seus sem-vergonha, assassinos, mal-nascidos”, insulta o advogado. Os homens do Grupo de Operações Especiais, de coletes à prova de bala, escudos, pistolas, fuzis e máscaras para gás lacrimogêneo, fitam, impassíveis, o franzino rival. “Saquem suas armas”, desafia Andrade. “Por que, em vez de ir atrás de bandidos, vocês reprimem o povo?”
A atitude do advogado, que diz ter sido atingido duas vezes pelas granadas de gás lacrimogêneo durante as manifestações, resume o estado de indignação, mesclada com um certo orgulho cívico, que toma conta dos equatorianos desde que eles saíram às ruas para derrubar o presidente Lucio Gutiérrez. “Nós nos levantamos porque estamos cansados”, resume Norma Eredia, uma fisioterapeuta de 44 anos.
Enquanto o Equador voltava à normalidade depois de duas semanas de manifestações que culminaram na destituição de Gutiérrez, a residência do embaixador brasileiro, onde o ex-presidente encontra-se refugiado, converteu-se num ponto de encontro dos protagonistas da queda. Aqui vem gente de todo tipo: empresários, estudantes, aposentados, homens de terno, senhoras de vestido e salto alto que se sentam na grama, ao lado de rapazes de camiseta e tênis. Se na última derrubada de presidente, em 2000, os atores principais foram os indígenas vindos do interior, este foi um movimento da classe média de Quito.
E espontâneo. “Nós nos autoconvocamos”, define Jorge Escobar, dono de uma agência de viagens que fatura US$ 500 mil por ano. “Ninguém nos disse que devíamos sair às ruas”, continua Germania Escobar, professora aposentada de 63 anos. “Fomos nos juntando na Universidade Católica e quando saímos à rua éramos 5 mil”, recorda Santiago Durango, 23 anos, estudante de arquitetura.
Até porque não havia quem os liderasse. Os líderes do movimento popular que derrubou Jamil Mahuad, há cinco anos, foram cooptados por Gutiérrez, ele mesmo um dos dirigentes do golpe. Os dirigentes dos principais partidos, da esquerda à direita do espectro, respaldaram o ex-presidente em algum ponto de seus 28 meses de governo.
Os quiteños se “autoconvocaram” por meio de uma emissora de rádio, La Luna. Telefonavam e entravam ao vivo dizendo onde estavam – na frente da Suprema Corte, na porta da casa de Gutiérrez – e convidavam os ouvintes a se juntarem ali. Trocavam mensagens pela internet e pelos celulares. Para cada dia, inventavam um instrumento de protesto: buzinas, panelas, balões, velas, rolos de papel higiênico.
Iniciados no dia 6, os protestos se realizavam no fim da tarde, depois do expediente, e nos fins de semana. “Não deixamos de trabalhar, de produzir para a economia nacional”, orgulha-se a empresária Nicete Borba, de 27 anos. “Era totalmente pacífico, não se quebrou um só vidro”, completa Germania. “Só quando chegaram os infiltrados.”
A vinda dos indígenas e “montubios” (moradores dos montes) simpatizantes de Gutiérrez, na quarta-feira, foi o momento de maior tensão. Jorge Escobar foi um dos que foram para a periferia bloquear a “contra-marcha” pró-Gutiérrez, com caminhões e materiais de construção fechando as vias de acesso. Os manifestantes contrários ao ex-presidente garantem que esses outros foram pagos pelo governo para virem apoiá-lo. Alguns chegaram a se queixar no rádio que não tinham recebido o que lhes haviam prometido – US$ 10 -, que estavam com fome e queriam voltar para casa.
Germania conta que saiu todos os dias às ruas com o marido, um advogado de 66 anos, os quatro filhos e três netos. “Eles eram só homens, enquanto nós éramos homens, mulheres, velhos, crianças”, relata Escobar. “Tiramos de suas mochilas paus com pregos nas pontas.” Outros empunhavam facões, alegando que eram ferramentas de trabalho.
Os indígenas foram abrigados pelo Ministério do Bem-Estar Social, que estava a cargo do cacique Antonio Varga, o ex-dirigente da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que liderou o levante de 2000. “Eles saquearam lojas, respaldados pelo Exército e pela polícia e guarnecidos pelo Ministério do Bem-Estar Social”, testemunha Escobar.
Os contra-manifestantes vindos do interior foram incentivados a enfrentar os “maricones de Quito”, numa exploração das divisões regionalistas que marcam o país. Afinal, os protestos contra Gutiérrez se concentraram na capital, embora tenha havido manifestações de porte bem menor também em Guayaquil, o centro econômico e industrial da costa do Pacífico, que mantém uma rivalidade secular com Quito, o centro político no interior do país.
Apesar da proeza de derrubar o presidente, os quiteños se mantêm sóbrios. À pergunta sobre se as marchas que protagonizou mudaram sua vida, o estudante Santiago responde, sem ilusões: “Nada mudou ainda. Se tudo continuar assim, não teremos estabilidade política. Vamos de presidente em presidente, já derrubamos três, mas os mesmos políticos de sempre seguem fazendo as mesmas palhaçadas”, descreve. “Tenho medo de que isso morra aqui.”