Para ele, fortalecimento da presença no Mercosul não exclui ‘conexão direta’ com a Alca
LIMA — O presidente eleito do Peru, Alejandro Toledo, deixou claro que vai manter uma posição independente nas negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), embora inclua em sua estratégia uma intensificação das relações com o Mercosul. Em entrevista a um pequeno grupo de jornalistas estrangeiros, Toledo disse que conduzirá esses processos, e mais uma “reengenharia” da Comunidade Andina, simultaneamente, observando que sabe que o presidente Fernando Henrique Cardoso não gosta da idéia.
Toledo garantiu que ficaram para trás os ressentimentos criados pela posição brasileira contrária a sancionar o governo do ex-presidente Alberto Fujimori diante da suspeita de fraude na eleição presidencial do ano passado, em que ele saiu derrotado. Mas alertou que isso está guardado em seu “back up” (arquivo) e fez um apelo para que os países “nunca mais se calem” diante de ameaças à democracia na América Latina.
Pergunta — Qual será sua estratégia em relação ao Mercosul e à Alca?
Alejandro Toledo — Creio que a América Latina tem diante de si um desafio e ao mesmo tempo uma oportunidade enormes: a entrada nos mercados dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia. Sou defensor de uma integração regional aberta e isso significa potencializar a Comunidade Andina primeiro. Creio que a Comunidade Andina chegou a um ponto em que está pronta para uma reengenharia de seu processo de integração. Vamos nos aproximar ainda mais do Mercosul. Creio que vamos buscar uma posição mais ativa. E aí vamos trabalhar com os países vizinhos — Argentina, Chile, Brasil, México. O México vai desempanhar um papel muito importante. Há um enorme potencial, mas, dentro deste conceito de integração regional aberta, isso não exclui nossa conexão direta com a Alca.
Pergunta — Mas então como isso será articulado?
Toledo — É preciso fazê-lo simultaneamente: uma reengenharia na Comunidade Andina — e não é só minha opinião pessoal, tenho conversado com outros presidentes sobre isso —, fortalecer nossa presença no Mercosul e trabalhar a Alca. Mas simultaneamente. Eu sei que Cardoso não gosta disso.
Pergunta — Por que acha que ele não gosta?
Toledo — Eu é que pergunto.
Pergunta — Em que ano o sr. acha que o Peru estará pronto para a Alca?
Toledo — Espero que, quando meu governo se conclua (em 2006), a Alca já esteja (em funcionamento).
Pergunta — Nos comícios havia sempre uma passagem protecionista quanto ao arroz e ao algodão peruanos, por exemplo. Como conciliar isso com o discurso da integração aberta?
Toledo — Não é proteger, é promover. Mas o Peru produz algodão — um dos melhores do mundo -, arroz e açúcar. Se há um produto competitivo em qualidade e preço, vou preferir o produto nacional. O governo importa US$ 1,7 bilhão ao ano. Não vamos importar uniformes ou sapatos da Coréia. A indústria daqui pode produzi-los. Mas é vital que sejam competitivos.
Pergunta — Em relação ao Brasil, talvez houvesse duas feridas: o fato de, na reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos), no ano passado, o Brasil ter sido contra sancionar o governo Fujimori depois das eleições e, a outra, os problemas que o sr. disse que vê no acordo entre Peru e Equador, patrocinado pelo Brasil. Essas feridas estão fechadas?
Toledo — Estão fechadas. Já me esqueci. Tirei do disco duro (memória do computador). Na conversa que tive com o presidente Cardoso lhe disse o que tinha que dizer e creio que tenha sido muito bom para limpar a mesa. Só espero que possamos fortalecer ainda mais nossas relações culturais, de país a país. Ainda é muito baixo o nível de intercâmbio comercial entre o Peru e o Brasil. Há projetos muito importantes — a estrada que vai ligar Ilo (porto no Pacífico) ao Brasil, o projeto do fosfato em Bayóvar (estrada para escoar fertilizantes para o Norte do Brasil) é outro que estamos olhando e espero que incrementemos os investimentos e o trabalho. Eu já me esqueci da posição do Brasil. Só a tenho em um back up (arquivo), para que nunca mais a América Latina permita que um país irmão atravesse a experiência que nós vivemos. Eu disse a Fernando Henrique Cardoso, por quem tenho uma grande admiração, desde que era intelectual, que, se há algum elemento que justifica a globalização é o tema da democracia. Mas de maneira geral temos uma boa relação e espero que ele nos possa acompanhar na transferência de governo. Vou levá-lo a Machu Pichu (cidade da extinta civilização incaica, onde Toledo tomará posse simbolicamente), mas lhe oferecerei uma colamina (comprimido para a altura).
Pergunta — Do que foi que o sr. não gostou no acordo com o Equador?
Toledo — Tinguiza (área fronteiriça cedida ao país vizinho). Mas, como já disse, esse é um capítulo encerrado. Fujimori não é o amigo mais íntimo que tenho, mas tem o mérito de ter obtido esse acordo e reconheço que o Brasil desempenhou um papel muito importante. E eu agradeci ao presidente Cardoso.
Pergunta — Qual sua visão do governo do presidente Hugo Chávez (da Venezuela)?
Toledo — Teremos uma relação de país andino.
Pergunta — Algum conselho que o sr. poderia dar?
Toledo — Que os países da América Latina não se calem quando tiverem de decidir sobre a democracia. E que a América Latina tenha os olhos muito abertos para que nunca mais se produza outro Fujimori com diferente rosto.
Pergunta — Há algum?
Toledo — Prefiro reservar-me.
Pergunta — Qual será sua política de combate às drogas?
Toledo — Será um tema central com os EUA. Vou a Washington e voltaremos a tocar no tema. Os países produtores de coca têm de se sentar com os consumidores para traçar uma estratégia conjunta. Sou partidário da substituição de cultivo que gera trabalho. O povo será pago para arrancar a folha e depois entra a segunda etapa de outros cultivos, como o café, o cacau e o chá. Arrancando as folhas, se impede o uso das fumigações. Deve haver um preço de refúgio para os produtos substitutos e que os Estados Unidos ponham algum recurso não só para comprar os produtos mas um pouco mais, para o programa.
Pergunta — Seu modelo econômico será diferente do de Fujimori?
Toledo — Já não existem modelos. (Trata-se de) administrar a economia com responsabilidade, uma política monetária e fiscal disciplinada, os preços relativos em seu lugar, as privatizações, construir um clima para atrair o investimento privado nacional e estrangeiro, estabilidade política, econômica e social, mas, fundamentalmente, estabilidade jurídica. Os capitais se movem com grande velocidade e vão para onde as regras do jogo são claras. Mas o modelo terá um rosto humano porque damos enorme importância ao investimento em nutrição, saúde e educação. Pareceria incongruente dizer isso, porque se necessitam recursos para investir nessas três áreas, que são de longa maturação. Dar nutrição para um menino de cinco anos, dar-lhe educação e mandá-lo para a universidade leva 20 anos. Mas são decisões de Estado que eu estou disposto a tomar. Precisamos fazer uma reengenharia dos investimentos públicos, cortar orçamentos em outras áreas, talvez comprar menos Migs-29, vamos eliminar o Ministério da Presidência e pouparemos recursos. Mas não gastaremos mais do que arrecadamos.
Pergunta — Em sua viagem ao Japão, que tema será fundamental?
Toledo — Dívida por Fuji… (risos). Não, investimentos privados, comércio, tecnologia, e, por certo, vamos pedir que o Japão colabore para que o sr. Fujimori possa responder às acusações perante a Justiça. Mas não sei se o primeiro-ministro vai me receber…
Pergunta — O que diria a Fujimori se cruzasse com ele na calçada em Tóquio?
Toledo — Atravessaria a rua… (risos). Não tenho nenhum sentido de revanche ou perseguição ou caça às bruxas. Mas, numa sociedade que atravessou a experiência do Peru, para construir esse futuro, é de vital importância olhar-se no espelho, para que isso nunca mais volte a acontecer. A corrupção e a violação dos direitos humanos são duas faces da mesma moeda: a impunidade. Quero fechar as feridas, mas não sou partidário da impunidade.
Pergunta — O sr. é a favor da redução das Forças Armadas?
Toledo — Vamos estudar uma redução na compra dos armamentos, mas essa não pode ser uma decisão unilateral do Peru e sim uma decisão sub-regional e regional, com o apoio da comunidade internacional.
Pergunta — Como será sua relação com os militares?
Toledo — Muito fluida. Eu distingo o joio do trigo. Não há dúvida de que houve policiais e militares desonestos e corruptos. Eles têm de ser processados e investigados. Mas é chegado o momento de resgatar a dignidade da instituição das Forças Armadas. Nunca o Peru teve uma oportunidade como agora de redefinir o papel das Forças Armadas no processo de crescimento econômico e desenvolvimento social.
Pergunta — Como resgatar a dignidade dos militares?
Toledo — As promoções serão exclusivamente em função do profissionalismo e não com critério político. Não haverá mais oficiais da reserva como adidos no exterior. É preciso devolver-lhes sua cultura interna em cada Arma. Gostaria que eles fossem sócios nessa tarefa de crescimento econômico e desenvolvimento social e dou um exemplo bem concreto: as rodovias devem ser feitas pelo setor privado, por meio de concessões. Mas os caminhos rurais, que vinculam os povoados mais remotos, podem ser feitos pelas Forças Armadas. E vamos propor uma mudança constitucional para que eles tenham direito a voto.
Pergunta — Qual o significado de um cholo (indígena) chegar à presidência?
Toledo — Profundo. Não há só expectativas conjunturais represadas, mas, historicamente, vejo nas ruas gente chorando que se aferra teimosamente a ter esperança, a crer em algo, apesar de ter sido desiludida. Isso pesa muito. Estou sentenciado a não fracassar.
Pergunta — O sr. se considera um Pachacútec (imperador quando os domínios incas se estendiam da Venezuela à Argentina) do século 21?
Toledo — A tradição diz que ele surge a cada 500 anos. Mas é uma coincidência. Não tenho nem o décimo das qualidades de Pachacútec, de quem sou grande admirador.