País pode fazer primeira alternância de poder fora do círculo colorado-blanco
MONTEVIDÉU – Pela primeira vez em um século e meio, o Uruguai pode realizar hoje uma alternância de poder fora do bipartidarismo de facto que vigora desde 1836, quando foram fundados os Partidos Colorado e Nacional (Blanco). De acordo com as pesquisas, o candidato do Encontro Progressista-Frente Ampla (EP-FA), de centro-esquerda, Tabaré Vázquez, está tecnicamente empatado com o colorado Jorge Batlle, na faixa dos 45% dos votos. Os indecisos, em torno de 6%, decidirão este segundo turno.
A tendência de crescimento favorece Batlle, que, há duas semanas, aparecia nas pesquisas atrás de Tabaré, entre 1 e 3 pontos porcentuais, dependendo do instituto. Até aqui, a definição dos indecisos em favor de Batlle explicou-se pela aliança, no segundo turno, entre colorados e blancos. No primeiro turno, dia 31 de outubro, Tabaré obteve 39,06% dos votos; Batlle, 31,96% e o candidato blanco, o ex-presidente Luis Alberto Lacalle (1990-1995), 21,92%.
Entretanto, a rejeição de Batlle, de 26%, é maior que a de Tabaré, de 22%, segundo o instituto Equipos, e a adesão blanca no segundo turno não garantiu a transferência dos votos de Lacalle para o colorado.
“A aliança funcionou só no nível da cúpula”, analisa o sociólogo Diego Piñeiro, da Universidad de la República, em Montevidéu. “Muitos caudilhos do interior ficaram contrariados com a reforma eleitoral (de 1996), que centralizou o poder dos partidos, e não se sentem muito comprometidos com o que decidem os diretórios partidários.” Além disso, a Frente Ampla negociou com dirigentes blancos do interior apoio agora em troca de votos nas eleições departamentais, que se realizarão em abril – pela primeira vez separadas das eleições para presidente e Congresso, eleito dia 31.
Além dos blancos, os indecisos estão concentrados no interior. Essa outra característica também não garante a vitória dos colorados, como poderia ter ocorrido no passado. E aqui se começa a entender o fenômeno Tabaré Vázquez. A Frente Ampla, fundada em 1971, era, antes, uma força apoiada exclusivamente pelos eleitores urbanos, jovens e intelectuais.
O médico Tabaré Vázquez, que começou a carreira política como assessor do Partido Socialista para assuntos de saúde, foi prefeito de Montevidéu (1990-1995) e a capital segue sendo seu reduto. Segundo pesquisa do instituto Interconsult, Tabaré tem 54% das intenções de voto em Montevidéu e 36% no interior. Essa fatia, no entanto, é bastante alta para um esquerdista, considerando a forte tradição conservadora do interior do Uruguai.
De acordo com Piñeiro, especialista em sociologia rural, a ascensão da Frente Ampla deve-se não só à industrialização do país, mas, mais especificamente, à expansão da agroindústria. Ironicamente, foi a ditadura militar (1973-1985) que incentivou a transferência de indústrias da zona urbana para a zona rural, com o intento de neutralizar a ação dos sindicatos.
No primeiro turno, Tabaré venceu, além da capital, em Paysandú e Maldonado, dois departamentos tipicamente agroindustriais; e em Canelones, que circunda Montevidéu e, apesar de tradição colorada, sofreu a influência favorável ao ex-prefeito. Os blancos não conseguiram reeleger deputados nos Departamentos de Negro e Soriano e a Frente elegeu seu primeiro deputado em Salto. Os três departamentos, vizinhos da Argentina, avançam na agroindustrialização.
Não por acaso, o apelo do ex-presidente Lacalle, às vésperas do primeiro
turno, dirigido ao “Uruguai profundo”, não surtiu efeito. Segundo levantamento do professor Piñeiro, apenas dois quintos da população uruguaia ainda vivem e trabalham na zona rural; um quinto vive e trabalha na zona urbana; e outros dois quintos vivem na zona rural, ou seja, em sítios, chácaras ou fazendas, mas trabalham nas cidades. “A fronteira entre o urbano e o rural já não é nítida”, concluiu Piñeiro.
O crescimento da agroindústria e da Frente Ampla foi paralelo nesta década.
Tabaré foi o mais votado na eleição presidencial de 1994. Não foi eleito graças a uma particularidade da legislação eleitoral anterior, que permitia a disputa da eleição presidencial por mais de um candidato do mesmo partido e previa a soma dos votos da mesma lista, canalizados para o mais votado.
Com isso, Julio Sanguinetti, que tivera sozinho 25%, atrás de Tabaré (com 31%), acabou ficando com mais de 32% e vencendo.
De acordo com cientistas políticos uruguaios, esse sistema possibilitou mais de um século (descontada a ditadura) de estabilidade democrática, já que as listas de candidatos dos dois principais partidos abarcavam todo o espectro ideológico, da esquerda à direita. Por isso, também, partidos de esquerda não prosperaram antes.
A reforma eleitoral de 1996, conduzida por colorados e blancos, acabando com o sistema de listas e criando o segundo turno, foi destinada a reduzir as chances de Tabaré. Se não fosse a mudança, ele teria sido eleito no primeiro turno. Agora, corre o risco de ser derrotado pela segunda vez pela lei eleitoral.
Mas ninguém arrisca prognósticos. “Realmente, não dá para saber o que vai acontecer”, resigna-se Fernando Andracht, professor de Ciências Sociais na Universidad de la República.