Brasileiros em fila na Venezuela: é a gasolina

Combustível contrabandeado rende R$ 0,93 por litro no Brasil

 

SANTA ELENA DE UAIRÉN

O sol do meio-dia castiga Santa Elena de Uairén, e esquenta o asfalto da avenida que corta o povoado, separando os dois postos de gasolina e as seis filas que correspondem a cada um: táxis venezuelanos e brasileiros, carros comuns dos dois países, caminhões e veículos com prioridade. Regina Sônia, que chegou às 7h com seu Fiesta com placas de Boa Vista, é a número 19 dos carros comuns brasileiros. 

Às 12h20, ouve colegas de fila chamarem o número 19. “A fila andou”, sai correndo, eufórica, com sua filha Jéssica, de um ano e meio, no colo, para entrar no carro. Mas um táxi Santana brasileiro atravessa na frente, sob o olhar complacente dos soldados venezuelanos. “Essa é a nossa vida”, diz Regina. “Os que pagam propina, passam na frente, mas não tenho dinheiro para isso.” Desempregada, 38 anos, mãe de três filhos, Regina conta que não tem outro modo de sustentar a família, a não ser vindo comprar gasolina na Venezuela para vender no Brasil.

Regina não está sozinha. Na manhã de sexta-feira, 532 veículos, entre carros e caminhões, brasileiros e venezuelanos, disputavam cada palmo das quilométricas filas dos postos de Santa Elena, de 20 mil habitantes. Eles são atraídos todos os dias pela gasolina a 70 bolívares (R$ 0,07) e o diesel a 48 (R$ 0,05), vendidos na Venezuela. Para os carros brasileiros, os preços são um pouco mais altos: R$ 0,20 e R$ 0,18, respectivamente. Mesmo assim, a lucratividade do contrabando é brutal.

Os venezuelanos vendem a gasolina em Santa Elena para contrabandistas brasileiros, por R$ 1,00, lucrando R$ 0,93 por litro. Seus Malibus, Caprices, Conquistadores, Landaus, Dodge Darts e Firelands, relíquias americanas dos anos 50 a 70, geralmente caindo aos pedaços e apelidados pelos brasileiros de “carros-balsa”, costumam vir com tanque original de 120 litros, mas não é difícil encontrá-los “adaptados” em Santa Elena com tanques de 170 litros. Assim, uma abastecida por dia rende no mínimo R$ 111,60. Nada mal, para um país cujo salário mínimo é de R$ 400 mensais.

Os brasileiros se encarregam de atravessar a fronteira com a gasolina, seja pela própria alfândega, onde só é confiscado combustível em frascos fora do tanque, ou pelas sinuosas estradas de terra que levam de um país ao outro, sem qualquer controle. Em Boa Vista, a capital de Roraima, a gasolina custa entre R$ 2,80 e R$ 2,90 nos postos, e é vendida por R$ 1,80 a R$ 2,00 pelos contrabandistas, com 100% de lucro. 

Os dois postos de Santa Elena, um povoado com pequeno consumo local, vendem mais de 2 milhões de litros de gasolina por mês – metade para os brasileiros e a outra metade para os venezuelanos. Coincidentemente, o presidente do Sindicato dos Postos de Boa Vista, Abel Galinha, estima que o comércio clandestino de gasolina na capital de Roraima alcance 2 milhões de litros por mês – 45% do mercado. 

A Receita Federal admite que boa parte da gasolina consumida em Roraima venha do contrabando venezuelano. Até postos de Boa Vista revendem essa gasolina, transportada num trabalho de formiga ao longo da rodovia de 225 quilômetros que liga a capital a Pacaraima, na fronteira com a Venezuela.

Alguns venezuelanos conseguem abastecer duas e até três vezes por dia, subornando os soldados que organizam as filas com propinas que vão de R$ 10 a R$ 90, dependendo do tamanho do tanque, segundo motoristas e funcionários de postos. Outros passam dias sem conseguir abastecer. O desespero dos venezuelanos é com acabar a gasolina: há uma cota diária de 36 mil litros para eles, somando os dois postos; o dos brasileiros, é com chegar as 17h, quando os postos se fecham para eles. 

Fransuildo Leite, de 40 anos, chegou às 7h de terça-feira à fila da Alfândega, para entrar na Venezuela, com seu filho, Francinaldo, de 16, e seu velho Chevette. Depois de três horas para entrar em Santa Elena, chegaram às 10h à fila do posto. Às 16h40, ainda não tinham conseguido abastecer. “Acho que hoje não vai dar”, disse Fransuildo, que estava tentando desde sábado.

A gasolina dos venezuelanos acaba por volta do meio-dia, gerando enormes tensões. Como a gasolina para os brasileiros é mais cara, eles acusam os postos – que a compram das refinarias por 50,30 bolívares (R$ 0,05) o litro – de guardá-la para eles. 

No caso de caminhões, que levam dois tanques de mil litros cada, a gorjeta aos soldados pode se elevar a R$ 100. Os frentistas também gostam de receber R$ 5, para encher o tanque, em vez de obedecer ao limite de 40 litros, imposto pelo Exército. O pagamento pode ser em reais ou bolívares. 

O coronel Pedro Briceño, comandante do Exército na região de Santa Elena, nega que haja corrupção. Para ele, os motoristas estão fazendo essas denúncias porque seus interesses estão sendo afetados pela ação do Exército. “Há muitos controles, por isso estão descontentes”, disse Briceño ao Estado.

O Exército assumiu em junho o controle sobre a ordem pública – as filas dos postos de Santa Elena se incluem nesse tópico -no Estado de Bolívar (que faz divisa com Roraima), depois que a Guarda Nacional, que antes cumpria esse papel, foi retirada das ruas, acusada de desaparecer com centenas de quilos de cocaína apreendidos, e de extorquir os garimpeiros da região, rica em ouro e diamante, e os contrabandistas de combustíveis.

Os motoristas contam que o período de não cobrança de propinas nas filas durou apenas duas semanas. Depois disso, o Exército aderiu às práticas da Guarda Nacional, embora cobrando menos. “O Exército só é mais barato”, disse, na quinta-feira, em entrevista à Rádio Activa, a emissora local, Carlos Serna, diretor de uma das quatro cooperativas de táxi da cidade. “Já tiramos daqui a Guarda Nacional por corrupção. Se precisar, tiraremos o Exército também”, ameaçou Serna, que é padrasto do prefeito Manuel Vallés, ele próprio um taxista. 

 

Colaborou Zequinha Neto, de Boa Vista. 

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