Conselheiro de Chávez explica ‘nova democracia’, diz que programas sociais ‘têm decaído’ e reclama de corrupção e burocracia
Os conselhos populares, nova instância de representação que o presidente Hugo Chávez está instituindo na Venezuela, atuarão de forma “coordenada” com os poderes convencionais, como governos e parlamentos locais, mas terão a palavra final. É o que antecipa o ex-vice-presidente José Vicente Rangel, principal conselheiro de Chávez, em entrevista ao Estado, de Caracas, pelo telefone. Assíduo freqüentador do Palácio Miraflores, Rangel, de 78 anos, advogado e jornalista, informa que o relançamento da reforma constitucional rejeitada no referendo do dia 2 está em discussão neste momento. Será iniciativa de 15% dos eleitores ou da Assembléia Nacional. E conterá os itens centrais da proposta anterior, como esse novo Poder Popular e a possibilidade de reeleição ilimitada do presidente.
Qual a lição do referendo?
Há lições para todos. Uma lição para o governo, que deve corrigir falhas, fundamentalmente no funcionamento do aparato administrativo. Para a oposição, no sentido de que se seguir pela via pacífica e democrática pode constituir uma alternativa. E uma lição para os que se abstiveram, no sentido de que é um voto perdido. O resultado é estreito demais, quase igual. Confirma que há uma polarização, uma divisão do país, o que não deve nos surpreender, porque essa divisão se observa em todos os países da região.
O governo Chávez acirrou demais essas divisões na Venezuela?
Não, acho que Chávez tem sido consciente demais de que não deve provocar enfrentamentos. Tenho estado muito próximo dele. Sei como ele tem freado os violentos tanto do nosso lado quanto do outro. Outro governante teria reagido ao golpe de abril de 2002, à greve petroleira (2002 e 2003), às “guarimbas” (tumultos de rua), aos atentados (contra sedes diplomáticas de Espanha, Colômbia e Argélia), de maneira repressiva, como fizeram presidentes anteriores.
Quem são esses setores mais violentos no governo?
No governo, não. No conjunto do que chamaríamos de chavismo. Há setores mais radicais que outros, como em todos os processos. Isso acontece no Brasil, com o Partido dos Trabalhadores. Há tendências mais moderadas e outras mais radicais.
Fala-se muito da formação de milícias bolivarianas armadas.
Isso é totalmente falso. É parte da campanha de desqualificação dos grupos bolivarianos. O que se está organizando, que está previsto na Constituição, é a reserva, que funciona em todas as partes do mundo.
Mas sua função primordial não é a defesa do regime?
Não. Defesa do Estado, da soberania nacional, como se organizam as milícias em Israel, na Suíça, nos EUA, que até são usadas para ir lutar no Iraque. A reserva não é invenção de Chávez. Está estabelecida na lei venezuelana desde a 4ª República (1958 a 1998).
Em que áreas o governo não vem funcionando bem?
É uma característica dos governos não funcionar como deveriam, em todos os países do mundo. Temos falhas, evidentemente. As Missões (programas sociais), por exemplo, têm decaído. Há muito burocratismo, pouca atenção ao cidadão. Parte dessas falhas se deve a um passado de décadas que não se pode apagar em oito anos de governo. Transformar a administração pública, esse pesado aparato, ineficiente e corrupto, é uma tarefa que não se conclui em pouco tempo. É uma cultura burocrática muito enraizada.
A reforma deve ser simplificada, segundo o presidente. Como será o seu relançamento?
Não posso lhe antecipar o que está sendo discutido neste momento. Mas, por exemplo, pela via legislativa podem-se aprovar alguns aspectos que estavam na reforma: a redução da jornada de trabalho (de 8 para 6 horas); o fundo (de previdência) social para os trabalhadores autônomos, como taxistas, cabeleireiros, etc., e informais; a paridade de gênero para os cargos eletivos. Por outro lado, se colocará em marcha o processo de reforma constitucional por meio da coleta de assinaturas ou por iniciativa da Assembléia Nacional. Seria o caso, por exemplo, da possibilidade de o chefe de Estado postular à reeleição – o que não quer dizer reeleição indefinida, porque em todo caso a eleição corresponde ao povo.
Um componente central da reforma era o Poder Popular, e os conselhos populares, que teriam empresas e propriedades comunais. O governo vai insistir nessa idéia?
Claro que sim. É a nova concepção de democracia. O povo não está outorgando o poder a um homem ou a uma instituição. O poder é do povo. Isso se permeia para baixo por meio dos conselhos populares, de trabalhadores, camponeses, estudantes, pescadores, etc.
Mas o fato de esses conselhos serem promovidos e financiados pelo governo central não faz com que ele os controle?
Eles terão um orçamento e serão administradores. Quem melhor conhece os problemas é quem vive no local. Receberão, por lei, 5% do Orçamento nacional. Haverá gente do governo e da oposição. Se numa localidade a maioria dos moradores eleger um conselho de oposição, ele receberá os mesmos recursos que um conselho cuja maioria for do governo bolivariano.
Essas instâncias eliminam o poder e a representatividade das câmaras municipais, das assembléias estaduais e da Assembléia Nacional?
De forma alguma. O que vai acontecer é que o Estado vai ao mais profundo da sociedade, onde não chegava antes, nem pelos governadores nem pelos prefeitos. Mas a ação desses conselhos vai se coordenar com prefeitos e governadores.
Um deles terá de decidir. Quem dará a palavra final?
Os conselhos, os cidadãos. Temos muitas experiências comunais que vêm funcionando, nas quais os cidadãos se reúnem, organizam as comunidades, prestam os serviços, estabelecem as prioridades quanto à resolução dos problemas.
É que em Cuba e na antiga União Soviética, onde há e houve conselhos assim, só participam aqueles de quem o governo gosta.
Você não tem por que comparar o caso da Venezuela com o de Cuba ou da União Soviética, que nem existe mais. Essa é uma democracia diferente, que avança para o socialismo como um modelo diferente, que parte justamente da consulta popular, em eleições plurais. Acaba de ser demonstrado: a oposição ganhou por um ponto e sua vitória foi reconhecida. Isso não ocorre em Cuba. Há algumas afinidades quanto às instituições, mas são modelos inteiramente distintos.
Caso a Venezuela ingresse no Mercosul, ela ainda poderá negociar um acordo de livre comércio com os EUA?
Essas são decisões políticas dos países, que a Venezuela tem respeitado muito. Não vamos entrar no Mercosul para impor nossas políticas.
Mas vocês saíram da Comunidade Andina de Nações por causa dos tratados bilaterais de livre comércio (da Colômbia e do Peru) com os EUA.
Não foi por isso. Saímos porque tínhamos sérias divergências políticas com alguns países, que evoluíram para a situação que temos hoje com a Colômbia. Há uma tendência a atribuir ao governo Chávez uma vontade hegemônica em todos os processos do qual ele participa. Isso não é verdade.
O Mercosul, como bloco, poderia negociar um tratado de livre comércio com os EUA, com a participação da Venezuela?
Não sei. Deixo a resposta à chancelaria.