A dura rotina do jornalismo independente na Venezuela

CAPA DO EL NACIONAL: com tiragem de 10.000 exemplares, jornal recebe doação de papel inclusive do Brasil | Lourival Sant’Anna

CARACAS – Nos últimos anos, o governo venezuelano adquiriu, cooptou ou fechou praticamente todos os veículos de comunicação tradicionais independentes. Mas não a sua audiência. Ela migrou para uma impressionante variedade de meios digitais alternativos, dos mais convencionais, como portais de notícias e canais no YouTube, para os mais artesanais, digamos assim, como grupos de Whatsapp e páginas no Instagram, Twitter e Facebook.

A migração da audiência dos meios convencionais para as plataformas digitais é um fenômeno universal, mas na Venezuela, onde 50 emissoras de rádio, por exemplo, foram expropriadas, ela ganha contornos de sobrevivência.

Além da censura e da perseguição crescentes por parte do regime – que os jornalistas temem que se intensificarão a partir das novas leis redigidas pela Assembleia Constituinte eleita no domingo –, há os problemas econômicos, como a escassez de papel. El Nacional, o principal jornal considerado independente no país, tem sustentado sua versão impressa, reduzida a simbólicos 10 mil exemplares, graças à doação de papel por diários de toda a região, incluindo do Brasil.

As informações mais importantes para boa parte dos venezuelanos – quais ruas estão bloqueadas por barricadas dos manifestantes, quantas pessoas morreram ou foram detidas em confrontos com a polícia e os coletivos chavistas, onde se pode encontrar papel higiênico e leite, e a que preço – chegam instantaneamente em seus celulares. Isso, apesar da precariedade das conexões de internet. Segundo Patrícia Rodríguez, diretora da página Reporte Ya, no Twitter, a Venezuela tem menos banda de internet que o Haiti.

Pablo Antillano, professor de política e comunicação da Universidade Central da Venezuela, e que percorre a região dando aulas no programa de governança da Universidade George Washington, afirma que na Venezuela o fenômeno é bem mais forte que nos outros países, não só por causa das pressões políticas e econômicas, mas também da cultura local: “Os venezuelanos se adaptaram mais rapidamente ao mundo digital por sua paixão de opinar, sua inclinação para a moda e para a aparência e atração pelo novo”.

O Reporte Ya foi criado há sete anos com recursos da Fundação Miguel Otero Silva, fundador do jornal El Nacional e pai de seu atual diretor, Miguel Henrique Otero, exilado na Espanha. Na sexta-feira, atingiu 500 mil seguidores. Nesse tempo, segundo Rodríguez, a equipe realizou oficinas de “alfabetização digital” para mais de 8 mil jornalistas, membros de organizações não-governamentais e líderes comunitários, para aprenderem não só a utilizarem as plataformas digitais mas também para gerar informações, que são enviadas para a página no Twitter e, depois de uma curadoria “artesanal”, publicadas no Reporte Ya.

A plataforma ganhou força em 2014, quando se intensificaram os confrontos entre governo e manifestantes. Espontaneamente, manifestantes que tinham informações sobre pessoas detidas, como fotos, documentos de identidade e até listas de nomes, começaram a envia-las para Reporte Ya. “As pessoas foram se vinculando a isso para saber quem foi detido vivo, para acompanhar o seu destino”, recorda Rodríguez. “Aí ficamos famosos.”

O grupo fez parcerias com 30 universidades, quase 50 meios de comunicação, associações de jornalistas, mais de 90 ONGs, 17 partidos e 30 órgãos estaduais e municipais, para a realização das oficinas. Uma parceria que tem dado muito resultado, segundo Rodríguez, é com a rede de rádio Fé y Alegría, que pertence aos jesuítas. Formada por emissoras comunitárias em comunidades pobres de todo o país, a rede tem mais de 40 anos e, além de audiência, muitos repórteres. “O rádio é o Twitter das pessoas mais pobres, sobretudo na zona rural, onde não há conexão de internet”, define Rodríguez, de 53 anos, que trabalhou como repórter investigativa no El Nacional e em outros veículos convencionais.

Esse público tem se tornado mais estratégico na medida em que as manifestações contra o governo se espalham pela zona rural, antes redutos chavistas. Segundo Rodríguez, a Fé y Alegría tem a vantagem de estar conectada à rede mundial de emissoras jesuítas, o que tornaria mais difícil cortar o seu sinal.

A própria rede, no entanto, aderiu às plataformas digitais. Podcasts de seus radialistas são colocados em seu grupo de whatsapp, e a partir daí compartilhados entre outros grupos de usuários. Uma rede de radialistas formou o Serviço de Informação Pública, um grupo de whatsapp no qual são postados podcasts com o formato de um noticiário de rádio.

Essa tem sido uma forma muito comum na Venezuela de distribuir notícias – que não são boatos ou lendas urbanas, como acontece usualmente, mas resultado da apuração de jornalistas seguindo as regras do ofício. E há também o chamado “jornalismo cidadão”, feito por pessoas que não são profissionais da área.

É o caso de moradores ao redor da Plaza Bolívar, no centro de Caracas, onde o governo costuma realizar seus comícios. Há uma guerra de informação acerca do número de participantes nesses atos. A TV estatal faz tomadas fechadas, de forma a parecer que há uma grande aglomeração. Os moradores gravam então numa só tomada a imagem que está na TV de sua casa, caminham até a janela e mostram como está de fato a praça naquele mesmo instante.

Muitos vídeos também têm sido distribuídos por whatsapp, Instagram, Facebook e Twitter dos confrontos e de agressões cometidas pela polícia. Num deles, um grupo de policiais cerca uma pessoa imobilizada no chão, e um deles dispara a queima-roupa contra sua perna.

Há também meios digitais mais convencionais, sustentados por publicidade. Um dos mais bem estruturados é El Estímulo, um portal que abriga vários sites, tanto de notícias quanto de comportamento, gastronomia e esportes. Esses veículos eram até três anos atrás publicações impressas. Com a mudança de hábitos de leitura, a crise econômica e a dificuldade de importar papel, migraram para a web. A redação reúne hoje 30 jornalistas. O portal tem a 96.ª audiência do país, mas é o maior em tempo médio de permanência por visitante: 6 minutos.

O jornalista Omar Lugo, de 53 anos, passou a dirigir o portal em 2013. Lugo, que morou no Rio de Janeiro entre 2002 e 2009, como correspondente da agência de notícias espanhola EFE, voltou para a Venezuela para dirigir o jornal El Mundo. O diário pertencia à Cadeia Capriles, um dos três maiores grupos de comunicação do país. Em 2013, a empresa foi vendida nao se sabe exatamente para quem, mas o dirigente chavista Tarek El Aissami, então governador de Aragua, hoje vice-presidente da República, passou a telefonar e a exigir mudanças editoriais no jornal, conta Lugo. Ele resistiu e foi demitido.

Os outros dois maiores grupos privados de comunicação venezuelanos, El Universal e Globovisión, tiveram o mesmo destino. Segundo Antillano, todos foram comprados por empresários que “floresceram em torno do chavismo”.

Apesar da proliferação e êxito dos meios digitais, eles não vivem num mar de rosas. Os jornalistas estão sob pressão. Há um ambiente de hostilidade contra eles, estimulado pelas autoridades, que acusam os meios independentes de serem “vendidos ao império”. Essa versão tem origem na ajuda dada por entidades internacionais, como o americano National Endowment for Democracy e a alemã Fundação Konrad Adenauer, que apoiaram a criação de alguns meios.

Diosdado Cabello, vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela e um dos homens mais influentes do regime, tem um programa na TV estatal com o sugestivo nome “Dando com o Porrete”, no qual ataca jornalistas e meios que publicam informações desfavoráveis ao governo. “Os militantes veem isso e atacam os repórteres nas ruas”, descreve Lugo.

Sem falar nas dificuldades inerentes de se cobrir a situação na Venezuela. Uma repórter do El Estímulo está de licença, depois de ter sido ferida numa mão por um cartucho de bomba de gás disparado pela polícia. Outra sofreu um disparo no rosto, e só não se feriu mais gravemente porque estava com máscara anti gás. A redação fica no bairro de classe média Altamira, um dos mais ocupados por manifestantes. Lugo tem uma colchonete em sua sala, para as noites em que não consegue voltar para casa, por causa das barricadas nas ruas. Tudo indica que ele ainda precisará dela por um bom tempo.

Publicado no app EXAME Hoje. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

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