Farc adotam doutrina bolivariana de Chávez

O presidente colombiano, Andrés Pastrana, tem fortes razões para estar incomodado com a insistência de seu colega venezuelano, Hugo Chávez, em “intermediar” as negociações entre o governo de Bogotá e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Ao alegar “ingerência nos assuntos internos colombianos”, o que Pastrana tem em mente vai muito além do inconveniente teórico de um presidente de país vizinho querer meter-se num processo em que não foi chamado.

Quando se refere, como tem feito desde sua posse em fevereiro, à possibilidade de “encontrar-se” com os guerrilheiros na selva, Chávez emprega linguagem ambígua. O encontro, muito mais do que físico, é político e ideológico. E sua senha chama-se “bolivarianismo”. Em entrevistas do Estado com Chávez, em maio, e Raúl Reyes, em julho, o bolivarianismo já despontara como o elo entre o tenente-coronel da reserva e o comandante guerrilheiro, ao lado da notável admiração do segundo pelo primeiro.

Mas é o historiador e jornalista Arturo Alape, o principal intérprete das Farc mantido na legalidade, que fornece a chave para compreender o vínculo entre a maior organização guerrilheira colombiana e o governo Chávez – cujo efeito colateral é a acelerada deterioração nas relações entre Venezuela e Colômbia, os dois principais países membros da Comunidade Andina.

Durante uma longa conversa sobre o futuro político das Farc, na casa do escritor, em Bogotá, Alape – autor de duas biografias sobre Pedro Antonio Marín, aliás Tiro Certo, líder máximo das Farc – disse ao Estado que já estão sendo lançadas as bases, “no campo e na cidade”, de um “movimento bolivariano” destinado a ser o germe de um partido político.

“Por enquanto, é um movimento clandestino, cuja extensão não se pode medir, mas que emergirá publicamente, num dado momento do processo”, explicou Alape. O timing não é casual. “Com a eleição de Chávez, a insurgência tem buscado apropriar-se do pensamento de (Simón) Bolívar, recolocando-se como um movimento voltado para as questões não só nacionais, mas latino-americanas.”

Nesse contexto, “é possível que Chávez venha conversar com Tiro Certo”, pontuou Alape, para completar: “O Brasil também deveria aproximar-se muito mais do conflito, deixar um pouco a ambição de ser um continente à parte, para desempenhar um papel importante como contrapeso aos Estados Unidos, sobretudo na posição contrária à intervenção (americana).”

Este é outro fator central – ao lado da ascensão de Chávez – que tem levado as Farc a procurar estender seu alcance político-ideológico ao âmbito sul-americano, tendo o bolivarianismo como veículo.

As Farc mostram-se seriamente preocupadas com as perspectivas de robustecimento da participação americana no esforço de guerra colombiano.

Na descrição do projeto das Farc para a Colômbia, Raúl Reyes disse ao Estado: “O Exército deve ter uma doutrina própria, libertária, bolivariana, não depender das diretrizes que chegam dos Estados Unidos, por meio da Escola das Américas e das imposições do Pentágono, que têm causado tanto mal, não só à Colômbia, mas a todos os países da América Latina – como o próprio Brasil.”

Igualmente, ao falar de economia, Reyes enfatizou a dimensão latino-americana da crise e a necessidade de os vizinhos unirem-se contra os países ricos: “A dívida externa é um dos problemas mais graves que afetam não apenas a Colômbia, mas todos os povos do nosso continente, porque a dívida cresce permanentemente e não há como pagá-la, mas na verdade já foi paga muitas vezes. No entanto, todos os brasileiros ou colombianos que nasceram ontem à noite já são devedores.”

“O que vemos aqui na Venezuela é uma crise terrível”, prosseguiu Reyes.

“Acontece que a Venezuela teve a vantagem de colocar no poder o presidente Hugo Chávez, um homem de muito carisma, que tem credibilidade imensa em amplos setores venezuelanos e o povo está esperando que ele possa resolver os problemas. Ocorre que, se ele não os puder resolver, não sei o que vai acontecer depois, porque a crise, independentemente de que esteja Chávez no poder, se manterá quem sabe até quando. E essa mesma crise eu vejo no Brasil, na Bolívia, no Peru, Panamá, México, por toda parte.”

Quanto à Colômbia, Reyes fala, às vezes, como se não fosse um dos protagonistas do conflito armado, e usa um argumento que, curiosamente, se assemelha àquele usado pelos defensores de uma intervenção multinacional liderada pelos Estados Unidos: “A Colômbia, em estado de guerra permanente,com ações da guerrilha em todo o país, ações do Exército por intermédio dos paramilitares, assassinando os civis desarmados, roubos, assaltos, vive uma situação sumamente perigosa, que preocupa muito aos governantes colombianos, mas também aos governantes vizinhos e em geral de todo o continente.”

O esforço das Farc de estabelecer vínculos entre o conflito armado colombiano e os problemas sul-americanos encontra forte ressonância no discurso de Hugo Chávez, cuja posse, em fevereiro, foi saudada pelo grupo como “um acontecimento muito importante para a América Latina e para a vigência das idéias do libertador Simón Bolívar”. Chávez se disse partidário de uma “integração integral”, que culmine ou numa federação de Estados ou numa comunidade das nações da América Latina e do Caribe.

Com relação especificamente à Colômbia, no entanto, a inspiração bolivariana de Chávez – e das Farc – tem um sinistro sentido de urgência. Se Chávez for tão literalmente bolivariano quanto afirma (“até os ossos”), a primeira fronteira que terá de desaparecer é a que separa o seu país da Colômbia.

Simón Bolívar (1783-1830), O Libertador, que liderou os movimentos de independência na Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia, governou ditatorialmente a Grande Colômbia, que unia justamente os dois primeiros.

A todas essas referências históricas, políticas e ideológicas somam-se as atitudes tomadas por Chávez em relação à Colômbia, desde que tomou posse.

O presidente da Venezuela e seu chanceler, José Vicente Rangel, têm aproveitado todas as oportunidades para provar que a soberania do Estado colombiano sobre seu território é uma ficção.

Quando fechou as fronteiras à passagem dos caminhões colombianos, como forma de compensar os caminhoneiros venezuelanos, que não encontram condições de trafegar nas estradas do país vizinho, por causa das ações da guerrilha, Chávez ironizou: “Para andar nas estradas colombianas, só com tanque deguerra.”

No fim de julho, caças venezuelanos foram acusados pela Colômbia de violar, por dois dias seguidos, o espaço aéreo colombiano. Ao desmentir a informação, o comando da Força Aérea deu a entender que a Colômbia não tem condições técnicas de avaliar se houve ou não invasão.

Em face de constantes evidências de que as Farc têm cruzado com relativa facilidade a fronteira com a Venezuela, para comprar armas, o chanceler colombiano, Guillermo Fernández de Soto, declarou, na quarta-feira, à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, que a Venezuela tem enfrentado problemas para proteger suas fronteiras. Rangel não perdeu a chance: “Temos um dispositivo militar que oxalá a Colômbia tivesse. Não teríamos o problema que temos neste momento.”

 

Resta saber até onde Chávez está disposto a ir. 

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