A ferro e fogo

(Revista Época) Como o chavismo, enfrentando a resistência da oposição, quer implantar uma ditadura à Cubana na Venezuela com uma Constituinte viciada

CARACAS – Voltar da rua, sentar na sala e ligar a TV é como ser teletransportado para outro país. Lá fora, Caracas é ocupada por manifestantes, que erguem barricadas e enfrentam a polícia e os “coletivos”, grupos armados em motocicletas, que abrem fogo e fogem impunemente. Já são mais de 113 mortos desde abril –7 apenas entre o início da paralisação de 48 horas na quarta-feira e a “tomada de Caracas”, na sexta. Nos canais de TV, controlados pelo governo, a mobilização convocada pela oposição e a greve geral dos sindicatos fracassaram, e o país caminha alegremente – apesar dos “terroristas” — para a eleição de uma Assembleia Constituinte.

O abismo entre as duas Venezuelas, a dos chavistas e a dos não-chavistas, passou a ser simbolizado por essa iniciativa do governo. Para o presidente Nicolás Maduro, a eleição deste domingo representa “o renascimento do libertador Simón Bolívar e do comandante Hugo Chávez, da esperança, do socialismo, da própria Venezuela”. Para os oposicionistas, é o “fim da república”, que dá lugar a um “Estado totalitário”.

Maduro explicou que o objetivo da nova Constituição é implantar um “Estado comunal”. O termo provém dos conselhos comunais, criados pelo então presidente Hugo Chávez em 2010. Inspirados nos Comitês de Defesa da Revolução (CDR) cubanos, são organizações controladas pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), responsáveis pela doutrinação, mobilização e vigilância da população. A ideia é que cada quarteirão tenha o seu. De acordo com o cientista político Carlos Romero, os conselhos vieram substituir os “círculos bolivarianos” criados na primeira década do regime, fracassados e desmoralizados por causa da corrupção: muitos ainda se lembram que alguns de seus líderes pegaram o dinheiro para comprar SUVs ou viajar para Miami.

Romero diz que esses conselhos são uma mescla dos CDRs com os sovietes da antiga URSS. O “Estado comunal”, segundo Maduro, seria a próxima etapa da “revolução bolivariana” preconizada por Chávez, morto em março de 2013 – sem cuja aprovação, ainda que póstuma, nada parece ter legitimidade para o regime.

Em Caracas, por exemplo, os conselhos comunais proliferaram nos redutos chavistas nas favelas do oeste e do extremo leste da cidade. Em meio à extrema escassez de produtos básicos, eles distribuem sacolas de comida (equivalentes a cestas básicas) ao preço de 160 mil bolívares (US$ 20) e serviços públicos. São eles que emitem a “carteirinha da pátria”, equivalente à carteirinha do Partido nos regimes comunistas, que davam acesso a empregos e direitos. É com ela que os venezuelanos poderão votar no domingo.

“É um esquema clientelista”, resume Pablo Antillano, professor de comunicação e política na Universidade Central da Venezuela e do programa de governança da Universidade George Washington. A região leste, onde estão os bairros de classe média e alta, criaram poucos conselhos. No bairro de San Bernardino, onde Antillano mora, há dois ou três. O professor, que publica colunas críticas ao regime, conta sorrindo que se filiou a um deles, mas nunca é chamado para as reuniões.

A reforma constitucional deve incorporar esses conselhos ao Estado como um poder (no sentido em que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes). Assim como outras organizações criadas pelo chavismo: as mais de 20 “missões”, que realizam trabalhos sociais, doutrinam e distribuem dinheiro; os “coletivos”, espécie de brigadas populares, e a milícia, uniformizada e armada para defender o regime. Atualmente com 500 mil homens e mulheres, Maduro anunciou que dobrará seu efetivo para 1 milhão.

Para Carlos Romero, a Constituinte deverá “refundar” os Poderes do Estado. Assim, os conselhos comunais e o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), controlado pelos chavistas, ocuparão o espaço da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, e do Ministério Público, liderado pela procuradora-geral Luisa Ortega Díaz, uma chavista que rompeu com o regime. No fim de março, o TSJ assumiu os poderes da Assembleia Nacional (AN). Mas recuou em seguida, diante da reação internacional negativa, e também da discordância da procuradora-geral. Nomeada em 2007 com aprovação da AN, que na época era de maioria chavista, Ortega se rebelou, considerando que o projeto de permanência no poder estava atropelando a Constituição desenhada pelo próprio Chávez.

Quando Maduro assinou o decreto da convocação da Constituinte, em maio, a procuradora-geral se opôs novamente, entrando com uma ação de inconstitucionalidade no TSJ – o que é inócuo, já que a Corte Suprema apoia o regime incondicionalmente. Um deputado do PSUV entrou com processo contra Ortega no TSJ, acusando-a de “desvios de função”. Enquanto examina a acusação, o tribunal proibiu a procuradora-geral de deixar o país. Além disso, parte das funções do Ministério Público foi deslocada para a Defensoria Pública, controlada pelos chavistas.

Em meio à balbúrdia institucional, a maioria oposicionista na AN nomeou novos magistrados para o TSJ, alegando que a escolha dos atuais não seguiu os trâmites legais. Depois da vitória da oposição na eleição de dezembro de 2015, e antes que os novos deputados assumissem, a maioria chavista substituiu os juízes do TSJ por chavistas. Desde o início da nova legislatura, em janeiro de 2016, tudo o que a AN vota é imediatamente anulado pelo TSJ. Os magistrados nomeados pela oposição estão enfrentando processos na própria Corte Suprema. É mais um aspecto da existência de duas Venezuelas paralelas. Segundo Romero, teme-se que a nova Constituição deverá facilitar a prisão e julgamento de juízes, além de reduzir o direito à liberdade de informação e de reunião. Seria uma forma de voltar a ter uma só Venezuela – a chavista. Como disse um dos condutores desse processo, Diosdado Cabello, o poderoso vice-presidente do PSUV, “nada mais chavista do que a Constituinte”.

Desde sua derrota na eleição para a AN, em 2015, o governo não permitiu a realização de novas votações. A oposição reuniu no ano passado o número de assinaturas necessário para a convocação de um referendo revogatório do mandato de Maduro, que termina em janeiro de 2019. Mas o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelos chavistas, impôs um calendário que inviabilizava a realização do referendo antes de janeiro deste ano, quando o mandato do presidente chegava à metade. A partir daí, pela lei, não haveria novas eleições, mas Maduro seria substituído por seu vice, nomeado por ele mesmo. A oposição desistiu. Pela Constituição, deveriam ter sido realizadas eleições para governadores e assembleias estaduais no fim do ano passado. Elas não estão nem sequer marcadas, assim como as eleições municipais, que deveriam ocorrer este ano.

Para a eleição da Constituinte, o governo criou novas regras. Pela lei eleitoral, as cadeiras da Assembleia Nacional sempre foram distribuídas proporcionalmente às populações de cada município. Dessa vez, cada município tem direito a uma cadeira, independentemente de sua população. Isso beneficia os chavistas, que têm mais apoio nos municípios menos populosos da zona rural. As capitais estaduais e Caracas terão mais dois deputados, o que nem de longe reequilibra a disputa.

Das 545 cadeiras da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), 364 serão preenchidas segundo esse critério, chamado de “territorial”. Outras 8 irão para representantes indígenas, escolhidos segundo “práticas ancestrais”. Os demais 173 deputados, que representam 32% do total, serão eleitos por um critério novo, chamado de “setorial”. São representantes de categorias, definidas pelo CNE. Assim, 79 serão escolhidos por sindicatos e associações, 28 pelos aposentados, 24 pelos conselhos comunais, outros 24 pelos estudantes, 8 por camponeses e pescadores, 5 empresários e 5 pessoas com deficiência.

Essa distribuição também favorece os chavistas. Os três maiores grupos que elegerão deputados pelo critério setorial são os aposentados, com 16%(ponto e vírgula), os conselhos comunais, com 9%(ponto e vírgula), e os funcionários públicos (a maior categoria profissional), com 7%. Os três são bases de apoio ao chavismo.

Como muitas pessoas estavam se queixando de que não tinham sido encaixadas em nenhum categoria, e portanto só poderão votar em um deputado, pelo critério territorial, o site de checagem Armando.info examinou uma amostra aleatória de 2,7 milhões de eleitores, que equivalem a 14% da lista dos habilitados a votar, fornecida pelo CNE. E descobriu que 29% deles não terão o direito a votar em candidatos pelo critério setorial. Ou seja, as regras do CNE criaram a figura de “super-eleitores”, que elegem dois deputados. Os estatísticos foram analisar então quem são eles. E constaram que o Estado de Zulia, o mais populoso do país, e um reduto oposicionista, tem o menor contingente de eleitores com direito ao voto duplo. Já os Estados que mais concentram super-eleitores são os de Cojedes e do Delta Amacuro, pequenos, rurais e solidamente chavistas.

Por curiosidade, os pesquisadores checaram o status de oposicionistas e governistas. E descobriram que os principais líderes oposicionistas terão direito a escolher só um deputado, enquanto os dirigentes chavistas elegerão dois.

Diante de tudo isso, a oposição decidiu boicotar as eleições. Não foi uma decisão fácil. Em 2005, ela fez a mesma coisa, denunciando riscos de fraude e de violação do sigilo eleitoral, e amargou cinco anos de uma Assembleia Nacional em que os chavistas reinaram absolutos. Depois disso, a oposição se uniu e se tornou competitiva, culminando na vitória de 2015. Não adiantou muita coisa: ela ganhou mas não levou. A eleição dessa Constituinte marca a desistência do jogo democrático, de ambos os lados.

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