O presidente Fernando Henrique Cardoso recebe hoje, em Manaus, seu colega venezuelano, Hugo Chávez, num momento político delicado.
Chávez é acusado de estar dando um golpe branco na enezuela, ao assumir o controle de fato do Judiciário e do Legislativo. O governo brasileiro tomou a decisão de recebê-lo com base na avaliação de que, neste momento, é melhor dialogar com ele do que fechar o canal de comunicação. O próprio governo está consciente, no entanto, de que Chávez extrairá ganhos políticos do encontro, como prova de respaldo do Brasil a seu governo.
Será uma “conversa ao pé do ouvido”, como a qualificou um diplomata. O Brasil quis manter a agenda em aberto, para que os presidentes possam conversar livremente, num encontro que deve durar entre duas e três horas.
Conforme Chávez oferecer abertura, Fernando Henrique colocará as preocupações brasileiras com os processos políticos na Venezuela e na Colômbia.
Espera-se que Chávez ofereça essa abertura. O presidente venezuelano admira pessoalmente Fernando Henrique. E foi ele quem solicitou o encontro, há cerca de três semanas (ver texto abaixo). Recebeu prontamente resposta positiva. A reunião, em princípio marcada para uma semana atrás, em Santarém (Pará), foi adiada por causa dos problemas políticos internos enfrentados por Fernando Henrique, como as críticas no interior da base aliada e a Marcha dos 100 mil.
Fernando Henrique deve explicar que o Brasil não gostaria que a Venezuela se convertesse em ditadura. O presidente brasileiro também deve expressar a inquietude de Brasília quanto ao conflito interno colombiano e sugerir que a intenção, manifesta por Chávez, de conversar diretamente com o comando das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) acrescenta mais um elemento de tensão ao cenário já instável da região.
Apesar de entender que a fronteira da Venezuela com a Colômbia é muito mais viva do que a do Brasil, e portanto a instabilidade colombiana é mais premente para os venezuelanos, Fernando Henrique defenderá o princípio da não-ingerência – seja de que lado for: americana ou venezuelana, a favor do governo ou da guerrilha.
Na entrevista coletiva que se seguirá ao encontro, Chávez, dotado de retórica envolvente e de reconhecido carisma pessoal, procurará qualificar a reunião como gesto de simpatia do Brasil, no esforço de exorcizar o fantasma do isolamento. Na visão de Chávez, ser recebido por Fernando Henrique é uma demonstração de prestígio e uma resposta aos seus críticos dentro e fora da Venezuela.
“O encontro é sumamente importante para nós, por valorizar a relação com um vizinho privilegiado”, disse ao Estado o embaixador da Venezuela em Brasília, Milos Alcalay . “Evidentemente, é importante que a comunidade internacional, sobretudo os vizinhos mais próximos, conheçam a realidade venezuelana e será uma boa ocasião para reiterar a fé do presidente Chávez na democracia, mas também sua convicção na mudança.”
Indagado sobre se o encontro traduz apoio político de Fernando Henrique a Chávez, o embaixador respondeu: “Você deveria perguntar isso ao embaixador do Brasil na Venezuela”, mas completou: “Imagino que o simples fato do encontro mais uma vez mostra a enorme empatia (entre os dois presidentes).”
Alcalay aproveitou para lembrar que “o próprio chanceler (Luiz Felipe) Lampreia já destacou, em mais de uma ocasião, o respaldo e a convicção que o Brasil tem de que a Venezuela está optando pela via democrática em seu processo de transformação”. O embaixador se queixou de que “tem havido muita desinformação” sobre o que ocorre em seu país: “Diz-se que o Congresso está fechado, e lá está o Congresso; que a Corte Suprema de Justiça está fechada, e lá está ela.”
O embaixador atribui as reações contra a Assembléia Nacional Constituinte, dominada pelos partidários de Chávez, a “uma minoria cujos interesses estão sendo afetados”. Reiterou que Chávez pretende executar as mudanças pela via democrática, mas advertiu: “Claro que, se não se aceitam as regras democráticas, ele tem instrumentos legais para impor as mudanças pelas quais o povo votou.”
Bons olhos – Este é o quarto encontro entre os dois presidentes, todos ocorridos no Brasil, destino da primeira viagem internacional de Chávez como presidente eleito, cinco dias depois das eleições, em fevereiro. Chávez tem salientado sua admiração por Fernando Henrique e seu interesse em intensificar as relações com o Brasil.
Em virtude de sua filosofia bolivariana, o presidente venezuelano quer promover maior integração na América Latina. Sua abordagem é a aproximação dos blocos, como o Mercosul e a Comunidade Andina (Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia e Equador). Essa aproximação, na visão de Chávez, poderia começar com Brasil e Venezuela.
O governo brasileiro vê com bons olhos essa abordagem. Em entrevista publicada na quinta-feira pelo Estado, Fernando Henrique disse que iria à reunião na qualidade de chefe de Estado, e não de governo. Com isso, quis não só enfatizar que não importam suas posições político-ideológicas sobre o governo Chávez, mas sugerir, também, que há interesses estratégicos do Brasil em jogo.
O problema, na visão de diplomatas, é como calibrar esses interesses com o papel de liderança política que o governo brasileiro vem procurando assumir na América do Sul. Esse papel inclui a defesa da democracia. Nas duas crises institucionais vividas pelo Paraguai nos últimos dois anos, o Brasil conseguiu exercê-lo com sucesso e relativa facilidade, por se tratar de membro do Mercosul.
Por enquanto, o governo brasileiro acredita que ainda se pode considerar que Chávez está agindo dentro dos parâmetros democráticos. Na comparação com o presidente peruano, Alberto Fujimori, por exemplo, Chávez leva vantagem, na visão do Itamaraty. Fujimori dissolveu o Congresso e fechou o Judiciário, para só depois reinstitucionalizar o país e legitimar suas ações, com a realização de eleições.
“Chávez não colocou o carro na frente dos bois”, compara um diplomata. De acordo com essa visão, tecnicamente, pode-se argumentar que as decisões tomadas pela Assembléia Nacional Constituinte, dominada pelos partidários do presidente, de declarar “emergências” legislativa e judiciária, estão dentrodos parâmetros democráticos. “Chávez não fez nada inaceitável até agora”, analisa o diplomata. O cenário, no entanto, é fluido.