Como aumentar a pressão sobre os chavistas sem prejudicar a população e qual o papel dos países vizinhos? São questões que estão fora do debate
A fome e a escassez têm facilitado o controle social da população pelo regime chavista. Por isso, sanções comerciais contra a Venezuela seriam contraproducentes. O que a comunidade internacional tem a fazer é bloquear os bens de todos os envolvidos nas atrocidades do regime e excluir o governo venezuelano dos órgãos multilaterais — podendo até colocar em seu lugar a Assembleia Nacional e os juízes do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) por ela designados.
Essa foi a posição expressa por representantes da oposição venezuelana, em um seminário na Fundação Fernando Henrique Cardoso, na terça-feira. “O plano do chavismo é de controle social, dominação”, disse a deputada Manuela Bolívar, do Partido Vontade Popular, cujo líder, Leopoldo López, está preso desde 2014. “Querem aniquilar os democratas, gerar fome para diminuir e controlar a sociedade, gerar medo para não se oporem.”
Bolívar disse depois a EXAME: “Para todo crime tem de haver punição, e a comunidade internacional precisa assumir sua parte. Estamos falando de sanções individuais”. Ela citou como exemplo o presidente do TSJ nomeado pelo regime, Maikel Moreno, os comandantes militares, os responsáveis pela morte de 133 pessoas nas manifestações iniciadas no fim de março e pela distribuição de alimentos segundo critérios políticos.
“Para além das figuras mais visíveis, há executores das políticas, que têm que sofrer consequências”, argumentou a deputada. “Toda essa gente tem propriedades e contas no exterior, todos compram seus alimentos fora.” Além da União Europeia e do Brasil, Bolívar diz que seria necessário também “forçar” governos amigáveis ao chavismo, como Rússia, Turquia e China, a congelar esses bens.
Depois da eleição da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), rejeitada pela comunidade internacional porque a votação foi desenhada para os chavistas vencerem, deveria ter sido convocada mediante consulta popular e teve indícios de fraude, o presidente Donald Trump adotou sanções contra 22 funcionários venezuelanos, incluindo o presidente Nicolás Maduro. Seus bens foram congelados nos Estados Unidos. O Canadá impôs medidas semelhantes.
“Os bens deles estão especialmente na Europa, em Madri, Paris, Londres e Copenhague”, citou David Smolansky, prefeito deposto de El Hatillo, município da Grande Caracas. Ele foi destituído do cargo e condenado em agosto a 15 meses de prisão pelo TSJ, em uma sentença idêntica para cinco prefeitos, por não terem reprimido as manifestações contra a eleição de 30 de julho da ANC.
Smolansky contou que viajou durante um mês na clandestinidade pela Venezuela, passou por 35 postos de controle, disfarçado de missionário com uma Bíblia, percorreu 1.500 km até entrar no Brasil por terra, onde está exilado. Ele aguarda resposta a um pedido de asilo nos Estados Unidos. Há três semanas, depôs na sede da OEA em Washington, que investiga crimes de lesa-humanidade pelo regime chavista.
Segundo Smolansky, que também é do Partido Vontade Popular, há quatro prefeitos presos, seis no exílio e vinte sob investigação.
De acordo com o advogado Alfredo Romero, diretor-executivo do Foro Penal Venezuelano, a repressão aumentou muito depois da morte em 2013 do então presidente Hugo Chávez e chegada ao poder de seu sucessor, Nicolás Maduro.
Segundo o Foro, que monitora as violações de direitos humanos desde 2002, sob Chávez o ano com o maior número de presos políticos foi 2007, quando 251 pessoas foram detidas nos protestos contra o fechamento da Rádio e TV Caracas.
De janeiro de 2014 para cá, houve 11.993 detenções. As pessoas são presas e soltas, no que Romero chama de “porta giratória”. Sob Chávez, a maior quantidade de pessoas que ficaram presas ao mesmo tempo foram 49, em 2009. No governo Maduro, nos protestos contra a realização das eleições para a ANC, chegaram a ficar 1.272 presos ao mesmo tempo. Hoje, são 401 presos políticos, disse Romero, que participou do seminário via Skype.
“É preciso pressionar para que se faça uma negociação real”, argumentou Smolansky. “Por enquanto só estão ganhando tempo.” A deputada Manuela Bolívar apresentou as condições da oposição para uma negociação: abertura de um canal democrático; libertação de todos os presos políticos; cronograma de eleições, inclusive para presidente; o reconhecimento da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, eleita em 2015 e agora substituída pela ANC, como único poder com capacidade de legislar.
A oposição exige ainda que as eleições sigam o princípio de um voto por eleitor, em vez das regras aplicadas na votação para a ANC, que deram um segundo voto para categorias sociais e profissionais segundo critérios nebulosos que beneficiaram os chavistas.
Não é fácil ser oposição na Venezuela. Num momento se luta para que se realizem eleições, e no momento seguinte é preciso convocar a população a boicotar a votação. Depois da derrota para a Assembleia Nacional em dezembro de 2015, o regime chavista suspendeu o calendário eleitoral. O Conselho Nacional Eleitoral não permitiu a realização do plebiscito revogatório do mandato de Maduro, no ano passado, e não promoveu as eleições regionais, que deveriam ter acontecido também em 2016.
Depois da eleição da ANC, com plenos poderes e dominada pelos chavistas, o regime adotou um ritmo eleitoral febril. No último dia 15, realizou as eleições regionais, e já marcou para 10 de dezembro as municipais, que de fato deveriam ocorrer este ano.
Os sete partidos que formam a frente de oposição Mesa da Unidade Democrática (MUD) anunciaram que vão boicotar essas eleições. No escrutínio regional, a MUD ficou dividida. Dos 23 Estados, o governo afirma ter vencido em 18 e a oposição nos 5 restantes, mais ou menos o contrário do que indicavam as pesquisas de opinião.
A oposição denunciou uma série de fraudes. Na tentativa de legitimar a ANC e testar a cobiça dos oposicionistas de exercer o poder, o regime obrigou os governadores eleitos a prestar juramento perante a Constituinte. Quatro governadores aceitaram. O quinto, Juan Pablo Guanipa, eleito em Zulia, o Estado mais rico da Venezuela, recusou-se e foi destituído.
Agora, de novo, a convocação de eleições divide a oposição. Embora os sete partidos da MUD tenham decidido boicotar o pleito municipal, muitos líderes comunitários acham que eles devem concorrer. Jesús Torrealba, ex-secretário-executivo da MUD, dedicou seu programa de terça-feira na Rádio RCN a defender a participação da oposição, e para isso chamou líderes comunitários, que entraram pelo telefone.
Belén Garantón, porta-voz do Conselho Comunal de Altamira, no município de Chacao (parte de Caracas), contou que 26 associações de moradores se reuniram com o prefeito Gustavo Duque, do Partido Primeiro Justiça (integrante da MUD), para apoiá-lo como candidato independente.
“Esperamos reunir mais que os 5% de assinaturas necessárias (para lançá-lo)”, disse Garantón. “Temos de defender nosso município e evitar que chegue uma pessoa que não tenha conexão com Chacao.”
Rosiris Toro, líder na favela do Petare e coordenadora do partido Um Novo Tempo no Estado de Miranda, declarou: “Se há partidos políticos, por que temos que reunir assinaturas? Por que da noite para o dia vamos estar com essa ambivalência sobre se vamos participar ou não?”.
O dilema lembra o boicote da oposição às eleições parlamentares de 2005, por causa de suspeitas de possíveis violações do sigilo do voto eletrônico. Ao longo de cinco anos, a oposição amargou a total ausência da Assembleia Nacional. A partir daquela experiência traumática, a oposição sempre disputou, argumentando que a desconfiança no sistema eleitoral beneficiava o chavismo. Entretanto, a votação para a ANC quebrou a credibilidade do sistema. Além de o desenho da votação para favorecer o chavismo, houve indícios de fraude nos dados sobre o comparecimento às urnas, uma informação vital, por causa do boicote da oposição.
Os chavistas se regozijam com a divisão da oposição e usam o boicote para desqualificá-la. O ex-vice-presidente e atual ministro da Educação Elías Jaua qualificou o boicote da “direita nacional” como “um chamado à insurreição, num claro desconhecimento do direito do povo de votar”.
Mesmo diante de tudo isso, a deputada Manuela Bolívar se mantém irredutível. “O voto está desvirtuado”, disse ela a EXAME. “Não só porque inabilitam candidatos, mas porque se um oposicionista ganha, roubam o cargo dele.” Ela citou como exemplo Andrés Velásquez, que segundo a oposição venceu a eleição para governador do Estado de Bolívar, mas o Conselho Nacional Eleitoral, dominado pelos chavistas, colocou-o em segundo lugar, por margem estreita.
“Os quatro governadores se colocaram fora da Mesa da Unidade Democrática, ao aceitar prestar juramento perante a Assembleia Nacional Constituinte”, opina Bolívar.
Para além da Venezuela
O embaixador Tarcísio Costa, diretor do Departamento da América do Sul Setentrional e Ocidental do Itamaraty, disse que o Brasil tem defendido aumentar a pressão sobre o governo Maduro, ao mesmo tempo em que se colocou à disposição para mediar uma negociação de fato, e não apenas um diálogo, entre governo e oposição, com base em dois pressupostos: o reconhecimento de que houve uma ruptura democrática e que é preciso restaurar a democracia.
Costa lembrou que as tentativas de mediação do ex-primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, da Unasur (União das Nações Sul-Americanas) e do Vaticano resultaram apenas em trocas de farpas entre o governo venezuelano e a Igreja, e nisso o Brasil não quer se envolver. “Tem que ter foco”, disse o embaixador.
Em resposta a uma proposta do ex-presidente boliviano Jorge Quiroga, também presente no evento, para que a Venezuela seja expulsa da Unasur, Costa lembrou que as decisões no bloco exigem consenso, o que impede qualquer decisão nesse sentido, já que ali, além da Venezuela, estão representados aliados seus, como Bolívia e Equador.
O embaixador defendeu mais pressão na OEA sobre os países aliados da Venezuela, incluindo os caribenhos que dependem de seu petróleo. Essa pressão, segundo ele, poderia ser exercida por meio do Grupo de Lima, formado em agosto na capital peruana, em uma reunião para discutir a quebra da ordem democrática na Venezuela, com a participação de Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que a opinião pública brasileira não parece ter a real dimensão do risco representado pela situação na Venezuela para as instituições democráticas, em crise também no Brasil e em outros lugares do mundo.
“A população está preocupada com a falta de confiabilidade nas instituições e a defesa da democracia não é um valor tão percebido neste momento”, avaliou FHC. “Para termos mais apoio, temos de avançar no campo da defesa dos direitos humanos, que têm estacas mais firmes no inconsciente coletivo das pessoas. Mostrar mais claramente o desastre que está ocorrendo lá e as consequências disso inclusive para o Brasil, com o aumento dos refugiados.”
O ex-presidente disse também que as reações da América Latina ao autoritarismo na Venezuela dependerão dos resultados das eleições presidenciais do ano que no México, Colômbia e Brasil. “Não estamos discutindo apenas Venezuela, mas vamos acreditar ou não que o jogo na região deve ser realmente democrático?” Infelizmente, a pergunta não vale só para os venezuelanos.
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