CARACAS – Joseph Masri ainda olha em volta com um ar de incredulidade. O que ele conseguiu construir, desde que chegou da Síria, há 44 anos, está completamente destruído.
Sua casa de ferragens no bairro de Catia, periferia oeste de Caracas, não foi “apenas” saqueada na noite de sábado para domingo: todas as prateleiras, vitrines e balcões da ampla loja foram arrebentadas, numa demonstração de ódio. Na quarta e na quinta-feira, seu filho Charlie, de 24 anos, e três funcionários da loja partiram para o contra-ataque. “Fizemos batidas em três casas e recuperamos isso aqui”, dizem eles, apontando para um punhado de latas de tinta, lustres e outros artigos vendidos na loja.
“Com a polícia?”, pergunta o Estado. “Aqui, a gente não espera a polícia”, sorri Charlie, levantando a ponta da camiseta, para mostrar a pistola semi-automática na cintura. E como chegaram até eles? “Os vizinhos nos informaram”, explica Masri, desviando o olhar para dois rapazes que chegam à porta. “Vá pegar 200 mil bolívares (US$ 180) e entregue para eles”, ordena ao filho, sem maiores explicações. A onda de saques do fim da semana parece ter inaugurado uma rentável rede de informações no morro de Catia, em cujas favelas se concentram os saqueadores.
Masri calcula seu prejuízo em US$ 450 mil, que sua apólice cobriria. Mas há uma discussão com a seguradora, que alega que, se o que ocorreu no fim de semana foi produto de um golpe de Estado, isso se inclui nas cláusulas dos incidentes excepcionais, não cobertos.
Centenas de comerciantes estão na mesma situação de Masri. O governo acena com alguma indenização.
Os saques materializam violentamente a polarização entre os venezuelanos que não têm nada e os que têm alguma coisa. Essa divisão não foi inventada pelo presidente Hugo Chávez. Ela reflete a péssima distribuição de renda que caracteriza historicamente a América Latina.
No caso da Venezuela, rica em petróleo, é resultado de quatro décadas de governos patrimonialistas e corruptos, admitem os opositores do presidente que não pertencem à Ação Democrática (AD) nem ao Partido Social-Cristão (Copei), que se revezaram no poder de 1958 a 1998.
Mas foi Chávez quem transformou essa divisão em arma política, apresentando-se como o presidente de uma massa miserável que nunca teve voz, em oposição a uma elite egoísta, racista e corrupta. Mesmo depois de eleito, em dezembro de 1998, Chávez continuou explorando esse conflito, como se continuasse em campanha.
Depois do golpe seguido de contragolpe, na segunda-feira, o tenente-coronel da reserva declarava que queria ser o presidente de todos os venezuelanos. E narrava o encontro que teve com uma “senhora da oligarquia” no aeroporto de Marquetía. Mesmo se confessando “oligárquica”, ela disse que gostava do presidente. “Você é tão venezuelana quanto a lavadeira Petra Gómez, que mora na periferia”, retribuiu-lhe Chávez. “A diferença é que ela precisa que eu cuide dela, você, não.” O fato de o presidente, depois de três anos no cargo, ter que explicar isso talvez seja a melhor medida do nível de clivagem a que chegou essa sociedade.
O pior é que a sinceridade de seu proclamado desejo de conciliação foi imediatamente posta em dúvida. Ainda no domingo, horas depois de retomar o poder e se declarar pronto a curar as feridas com os inimigos, Chávez foi filmado dizendo a seus seguidores, na 42.ª Brigada de Pára-Quedistas, em Maracay, aonde foi agradecer pelo contragolpe: “Um pequeno grupo de traidores, de oligarcas, pensou que podia nos vencer. Queriam uma prova do que é capaz o povo venezuelano. Aí a têm. Não há compromissos com cúpulas oligárquicas.”
“Os que estão com Chávez são, em sua maioria, os desesperançados, que não crêem que, por si mesmos, podem ascender socialmente ou alcançar objetivos individuais”, analisa o sociólogo Luis Pedro España, da Universidade Católica Andrés Bello, estudioso da pobreza.
Como toda generalização, essa é injusta: não explica o caso do motorista Hernando Duarte, que trabalha duro, mas não conseguirá mandar seu filho para a universidade no ano que vem, porque a mensalidade das privadas não sai por menos de US$ 150, e as públicas são inacessíveis para quem não cursou os melhores colégios. “Sei que Chávez comete excessos, mas, com os políticos tradicionais, também nunca teremos chances”, diz ele.
Apesar da forte mistura racial na Venezuela, a divisão tem o seu componente étnico. O cientista político Carlos Romero aponta para as fotos nos jornais do grupo de comandantes sublevados e do presidente que designaram, Pedro Carmona, todos de tez clara, e os compara com Chávez e os militares que vieram em seu resgate, de pele escura e traços mais nitidamente indígenas:
“Essa é a representação gráfica da distinção.”
“Foi plantada uma semente de racismo que é muito perigosa”, lamenta Victor Ferreira, presidente do canal Venevisión. “Nós, venezuelanos, nos distinguimos por sermos muito carinhosos e respeitosos entre nós, pelo nosso humor. Temos que recuperar isso.” A dificuldade está em encontrar interlocutores. Ferreira, como outros donos de meios de comunicação, apoiou o golpe do dia 11. E os três principais partidos de oposição – AD, Copei e Primeiro Justiça – passaram a semana exigindo a renúncia de Chávez.
De sua parte, o presidente não fez menção de abandonar suas concepções “bolivarianas” – uma mixórdia de nacionalismo, intervencionismo estatal e populismo agressivo que guarda pouca ou nenhuma relação com as teses do “libertador” Simón Bolívar, que se inspirava no liberalismo de Rousseau e nos ideais do classicismo greco-romano. O elo, no entanto, existe, no imaginário: assim como Bolívar libertou a América hispânica do jugo colonial e da oligarquia local que dele se beneficiava, caberia a Chávez fazer o mesmo dois séculos depois, agora com o império tendo como sede os Estados Unidos.
Nada disso se resolveu na seqüência de golpe e contragolpe de uma semana atrás. Apenas se reduziram as opções de solução razoavelmente pacífica e com alguma tintura institucional.