Mais de um morto por dia. Os protestos na Venezuela completam 100 dias e 108 mortos, com duas evidências: a situação se deteriora a cada dia, sem que haja um desfecho à vista. A rotina diária de manifestações e repressão, combinada com o saldo elevado de mortos, já torna o movimento pela democracia na Venezuela um fato singular na história recente da América do Sul: desde o fim das ditaduras militares do subcontinente, nos anos 80 e 90, não houve um enfrentamento tão longo e sangrento entre população e forças de segurança.
Um componente inquietante e potencialmente explosivo na Venezuela é a presença de grupos violentos financiados pelo Estado, que não pertencem às Forças Armadas nem à polícia regulares. Trata-se dos “coletivos”, milícias armadas que hoje somam meio milhão de homens e mulheres, e que o presidente Nicolás Maduro quer ampliar para 1 milhão.
Foi um coletivo como esse, munido de paus e ferros, que invadiu a Assembleia Nacional na quarta-feira, feriu 5 deputados da oposição e 7 funcionários e repórteres que cobriam uma solenidade pelos 206 anos da independência do país. Os ativistas tomaram câmeras e microfones dos repórteres, impedindo-os de gravar as cenas. A Guarda Nacional Bolivariana, que protege o local, assistiu imóvel ao cerco e à invasão da Assembleia, de maioria oposicionista, que duraram 7 horas.
Disparos de armas de fogo e bombas de gás lacrimogêneo atingiram o prédio e quebraram vidraças. “O governo mandou esta gente armada porque sabe que não tem gente”, disse o deputado Tomás Guanipa, mostrando à imprensa cartuchos de balas caídos no chão do prédio.
“Isto não dói tanto quanto assistir todos os dias como perdemos um pouco mais o nosso país”, lamentou o deputado Armando Arias, enquanto era atendido em uma ambulância por ferimentos na cabeça, com a camisa ensanguentada. “Algumas cacetadas não são nada, comparadas com 100 jovens mortos.” Outro deputado, Américo de Grazia, sofreu convulsões e teve de ser removido em uma maca.
O episódio é exemplar da forma como chavistas, forças de segurança e militantes interagem para criar um ambiente de caos e violência e impedir manifestações pacíficas da maioria oposicionista. O cerco à Assembleia começou pela manhã, depois que o vice-presidente Tareck El Aissami anunciou que visitaria o local, acompanhado de autoridades civis e militares. “Ainda não terminamos definitivamente de romper as correntes do império”, pregou El Aissami. Os chavistas acusam os oposicionistas de serem “lacaios” do “imperialismo americano”. O vice acrescentou que a Assembleia Constituinte convocada pelo presidente Nicolás Maduro tornará a Venezuela verdadeiramente independente.
A convocação é um dos motivos que vêm se avolumando há anos para os protestos dos opositores. Na sessão do Dia da Independência, os deputados aprovaram a realização de uma consulta popular simbólica — já que todas as decisões da Assembleia que contrariam o governo são anuladas pelo Tribunal Supremo de Justiça — acerca da convocação da Constituinte. O governo marcou as eleições para o dia 30. Metade das 500 cadeiras será preenchida por conselhos comunais dominados pelo Parido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), do governo.
Depois que El Aissami e os que o acompanhavam foram embora, dezenas de militantes ergueram um piquete na entrada da Assembleia, primeiro entoando slogans ameaçadores, depois invadindo o prédio. Depois de sete horas de cerco e ocupação, a Guarda formou um corredor para possibilitar a saída de centenas de pessoas confinadas no prédio.
Em seu discurso no desfile militar pelo Dia da Independência, Maduro condenou o ataque: “Nunca serei cúmplice de atos de violência”, disse ele, para em seguida pôr a culpa na oposição, que segundo ele não controla “ataques terroristas” cometidos contra as forças de segurança por manifestantes contra o governo.
Entretanto, na celebração do sétimo aniversário da criação da Milícia Nacional Bolivariana, dia 17 de abril, no Palácio de Miraflores, Maduro convocou o grupo a defender seu governo: “Não tenho medo, continuarei enfrentando os que continuarem enfrentando a pátria. Não é tempo de traidores. Que cada um se defina. Se está com a pátria ou com a traição da pátria. Não é tempo de vacilação, é tempo de revolução, lealdade praticada, de coração”. Na ocasião, o presidente anunciou a duplicação do efetivo e a entrega de armas pelo Exército para a Milícia.
Como se chegou a esse estado de coisas, num país com um relativo histórico de democracia, e as maiores reservas de petróleo do mundo? A sequência dos acontecimentos fala por si mesma.
Depois de ficar conhecido numa tentativa de golpe em 1992, o tenente-coronel pára-quedista Hugo Chávez se elegeu presidente em 1998, prometendo distribuir as riquezas e pôr fim à desigualdade. Inicialmente bastante popular e autoconfiante, Chávez convocou uma Constituinte, aprovada por referendo, que lhe permitiu se reeleger para mais dois mandatos, e introduziu o referendo revogatório, espécie de recall presidencial, compatível com sua visão de uma democracia direta.
Em 2002, a oposição, formada por partidos tradicionais habituados a se alternar no poder, fez uma tentativa de golpe, em aliança com uma parcela dos militares. Em menos de dois dias, os chavistas recuperaram o poder. A partir daí, Chávez se tornou bem mais intolerante, fechando TVs e prendendo oposicionistas. Depois de uma greve contra o regime na PDVSA, ele demitiu em massa profissionais da estatal do petróleo, abrindo mão de seu conhecimento técnico.
Em 2007, Chávez tentou dar mais um passo em seu projeto de permanência no poder, com uma nova Constituição, que lhe permitiria reeleger-se indefinidamente e confiscar propriedades privadas. Sofreu então sua primeira derrota, em referendo.
Seu eleitorado, agora gozando de uma certa prosperidade, não queria a coletivização dos bens privados. Uma eleitora antes chavista explicou na época ao repórter de Exame Hoje que, se a nova Constituição fosse aprovada, teria de entregar ao Estado o segundo barracão que seu marido tinha construído e alugado, graças ao programa de crédito do governo para a compra de materiais de construção.
Em abril de 2011, finalmente, Chávez aprovou em referendo a reeleição ilimitada.
A oposição, por sua vez, aprendeu com suas derrotas. Depois de ficar ausente da Assembleia Nacional ao boicotar as eleições de 2006, denunciando fraude, ela se uniu e passou a se tornar competitiva novamente. Com a queda dos preços do petróleo e os problemas de desabastecimento, somados ao crescente autoritarismo, Chávez se elegeu presidente em dezembro de 2012 por uma margem estreita, com 55% dos votos, contra Henrique Capriles, governador de Miranda, que havia sido escolhido candidato único em primárias da oposição unida no início do ano. Chávez morreu de câncer quatro meses depois, sendo substituído por seu vice, Maduro, um ex-líder do sindicato dos motoristas de ônibus.
Em fevereiro de 2014, em meio a uma onda de manifestações pacíficas pela realização de novas eleições, o líder oposicionista Leopoldo López foi preso. Acusado de incitação à violência e assassinato, por causa das 43 mortes ocorridas durante os protestos, López foi condenado a 13 anos.
No dia 6 de dezembro de 2015, a oposição obteve maioria absoluta na Assembleia Nacional, com 56% dos votos e 112 das 167 cadeiras. Na noite do dia 23, antes que a nova Assembleia tomasse posse, o governo nomeou 13 juízes e 21 suplentes para o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), garantindo assim o pleno controle de suas decisões. Desde janeiro de 2016, todas as decisões da Assembleia contrárias aos interesses do governo têm sido anuladas pelo TSJ.
A partir da derrota de 2015, o regime tem evitado novas votações. A oposição reuniu no ano passado as assinaturas necessárias para a realização de um referendo revogatório do mandato de Maduro, que termina em janeiro de 2019. Para que houvesse novas eleições, o referendo deveria ocorrer antes de 10 de janeiro deste ano, quando o mandato chegou à sua metade. Depois disso, Maduro seria substituído pelo vice escolhido por ele mesmo. Entretanto, numa decisão em outubro do ano passado, o Conselho Nacional Eleitoral, também controlado pelos chavistas, definiu prazos para o processo que impossibilitaram uma nova eleição.
No dia 30 de março, o TSJ assumiu os poderes da Assembleia Nacional, alegando que ela estava“atuando de facto” e “em desacato” a sua ordem de impugnar a eleição de três deputados do Estado do Amazonas. Diante da reação internacional e da oposição da procuradora-geral, a chavista Luisa Ortega Díaz, o TSJ recuou. Mas a iniciativa desencadeou as manifestações diárias, que não pararam mais.
Em dezembro, deveriam ter sido realizadas eleições estaduais, mas elas foram adiadas indefinidamente. Neste ano, estavam previstas eleições municipais, mas também não há previsão para sua realização. Em seu lugar, Maduro convocou uma eleição dia 30 de julho para a Assembleia Constituinte. Entretanto, das 500 cadeiras, metade deverá ser preenchida pelos conselhos comunais, controlados pelos chavistas. O objetivo da nova Constituição é criar um “Estado comunal”, que tornaria órgãos do Estado os coletivos e as “missões”, agências também controladas pelos chavistas que realizam serviços sociais.
A procuradora-geral se opôs também à convocação da Constituinte, argumentando que ela teria de ser aprovada por referendo. Maduro promete um referendo depois, para sancionar a nova Constituição. Luisa Ortega entrou com ação no TSJ pedindo a anulação da convocação. E ainda acusou Maduro de “destruir o legado de Chávez”. É o mais importante racha no interior do chavismo.
O deputado Pedro Carreño, do PSUV, entrou com ação contra a procuradora-geral no Supremo, acusando-a de “faltas graves no exercício da função”. Carreño alegou que Ortega “mentiu à nação” ao afirmar que se opusera à nomeação dos 34 magistrados do TSJ em dezembro de 2015. O Supremo acatou a ação, bloqueou os bens da procuradora-geral e a impediu de deixar o país.
Em meio à confusão institucional em que a Venezuela está mergulhada, o TSJ transferiu as competências do Ministério Público (MP) para a Defensoria Pública e substituiu o vice-procurador-geral Rafael González, nomeado por Ortega, pela chavista Katherine Harrington. O MP rejeitou ambas as decisões como “inconstitucionais”.
Quando o TSJ fechou temporariamente a Assembleia, no fim de março, seu presidente, Julio Borges, pediu às Forças Armadas que assumissem uma posição em defesa do “Estado de Direito”. Há relatos de descontentamento entre militares de patente intermediária, enquanto os oficiais superiores se beneficiam com negócios lucrativos do Estado, como a distribuição de alimentos e o comércio exterior.
No dia 27, o investigador da Polícia Científica Óscar Pérez sobrevoou Caracas de helicóptero exibindo uma bandeira com os dizeres “Liberdade” e “350”, em alusão ao artigo da Constituição que prevê que o povo pode desobedecer um regime antidemocrático.
Em um vídeo de 4 minutos e meio, à frente de quatro homens fardados, encapuzados e armados de fuzis-metralhadoras, Pérez exortou a população e as forças de segurança a destituir o governo e convocar novas eleições. Segundo o presidente Maduro, do helicóptero foram realizados 15 disparos contra o Ministério da Justiça e lançadas 4 granadas contra o TSJ, mas ninguém ficou ferido.
Na quarta-feira, o investigador, que estava desaparecido, divulgou novo vídeo de 5 minutos e meio, em que aparece sentado, de farda, com uma bandeira venezuelana ao fundo e um fuzil ao lado. Pérez diz que ele e seus companheiros estão novamente em Caracas, “prontos e dispostos a continuar nossa luta fervente pela liberação de nossa pátria”.
“Queremos esclarecer que as manobras feitas dia 27 foram logradas à perfeição na primeira fase, em que só fizemos danos a estruturas do Ministério da Justiça e do Tribunal Supremo”, justifica Pérez, acusado de “terrorismo” por Maduro. “Não houve danos colaterais porque assim foi programado. Porque não somos assassinos como são você, senhor Nicolás Maduro, e Diosdado Cabello, que enluta todos os dias lares venezuelanos”, continuou o detetive, dirigindo-se ao vice-presidente do PSUV, que comanda a repressão.
Pérez garante que seu plano entrará numa “segunda fase”, e exorta as pessoas a agir: “Deixem de falar. Saiam às ruas para representar a Venezuela, lutar, porque se se dá essa Constituinte, não haverá Venezuela. Teremos presenteado nosso país aos cubanos”, disse ele, citando o G2, serviço de espionagem militar cubano, que presta assistência no monitoramento da lealdade dos oficiais venezuelanos. “E a um grupo pequeno de corruptos que negociam no governo o futuro de nosso país, de nosso destino, mediante a bebida e o vício”.
Na verdade, muitos venezuelanos já estão nas ruas. Mas é uma luta desigual.
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