CARACAS – O instituto ICS, dirigido por chavistas, divulgou na noite deste domingo uma pesquisa de boca de urna segundo a qual o comparecimento na eleição da Assembleia Constituinte teria sido de 8,5 milhões de pessoas, ou 44% do universo de 19,5 milhões habilitados a votar. O número contrasta fortemente com outras estimativas divulgadas por fontes independentes e da oposição, e sobretudo com a visita falta de pessoas votando, em comparação com eleições anteriores.
O jornalista Nelson Bocaranda afirmou que segundo o último boletim de apuração, compareceram 2.483.073 eleitores, o que representa 12,4 do eleitorado. Aparentemente a informação veio de dentro do próprio Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Bocaranda, que se celebrizou ao dar o furo de reportagem do câncer do então presidente Hugo Chávez, em 2011, até então um segredo, que o governo ainda desmentiu por muito tempo.
Ao menos 14 pessoas morreram nos confrontos entre manifestantes, de um lado, e a polícia e os coletivos chavistas armados, elevando para 125 o número de mortes em quatro meses de protestos.
No centro e em outras áreas de Caracas, houve panelaços e buzinaços contra os números divulgados. A área central da cidade, onde fica o Palácio Miraflores, sede da presidência, está fortemente vigiada pela polícia e pelo Sebrin, o serviço de inteligência do regime. Pelotões da polícia de choque se deslocaram o dia inteiro pela cidade, montados em motocicletas e apoiados por veículos blindados, tentando dispersar os grupos de manifestantes e desobstruir as vias.
O cardeal Jorge Urosa, arcebispo de Caracas, afirmou que a Igreja Católica está unanimemente contra a Constituinte. Segundo ele, a votação é “ilegal e inválida porque não foi convocada pelo povo”, referindo-se ao dispositivo da Constituição segundo o qual é necessário um referendo para aprovar a convocação de uma Assembleia Constituinte. Esse foi um dos motivos pelos quais a oposição boicotou a votação. O presidente Nicolás Maduro alegou que haveria um referendo depois, para aprovar a nova Carta.
A Organização dos Estados Americanos, assim como os governos do Brasil, da Colômbia, dos Estados Unidos e a União Europeia, entre outros, não reconheceram a eleição. A Constituinte deverá deslocar os poderes da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, para conselhos comunais, controlados pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). O Ministério Público, que considerou a eleição inconstitucional, também deverá ter suas prerrogativas transferidas para a Defensoria do Povo e o Tribunal Supremo de Justiça, ambos controlados pelos chavistas.
A votação foi desenhada de modo a favorecer o governo: a proporcionalidade entre população e número de deputados eleitos por cada município foi eliminada, para dar maior peso as cidades pequenas e à zona rural, onde os chavistas são mais fortes. Além disso, um terço das 545 cadeiras será ocupado por deputados eleitos por categorias profissionais e setores sociais segundo critérios do CNE.
Os eleitores podiam votar com a cédula de identidade ou com a carteirinha da pátria, que dá acesso aos benefícios sociais. No entanto, o governo recomendou que eles registrassem sua presença com a carteirinha da pátria numa máquina especial para isso. Assim, garantiam o direito de continuar sendo beneficiados pelos programas. O governo também ameaçou demitir os funcionários públicos que não votassem. A carteirinha pregou uma peça no presidente Nicolás Maduro. Quando ele foi registrar sua presença, a máquina informou que o eleitor não estava habilitado.
Ao votar, em Caracas, a presidente do CNE, Tibisay Lucena, assegurou que a eleição se desenrolava “com total normalidade”, e que 99,9% das seções eleitorais puderam ser abertas. “Todos os imprevistos surgidos foram solucionados”, comemorou.
A realidade nas ruas de Caracas e do restante do país era bem diferente. O repórter de EXAME Hoje acompanhou uma batalha entre manifestantes e a Guarda Nacional Bolivariana em uma barricada que bloqueia o acesso à Autopista, a principal artéria da cidade. O pelotão de choque disparava bombas de gás lacrimogêneo e os manifestantes, protegidos com máscaras, capacetes, escudos coletes improvisados, respondiam com pedras, com as próprias granadas de gás recolhidas no chão e com coquetéis molotov.
Havia um número igual de homens e mulheres, de jovens e de velhos, embora os jovens estivessem à frente na defesa das barricadas.
Nancy Nuñez, socióloga e funcionária pública aposentada de 69 anos, explicou: “Somos contra a ditadura. Estamos tentando recuperar a liberdade do nosso país”. Seu marido Nicolás Jove, de 70 anos, contou que tem uma loja de acessórios para celulares, mas não vende nada e sua loja está fechada há vários meses: “Não há dinheiro, não há dólares para importações, não há produtos”.
María Margarita Carías, de 64 anos, chefe de cozinha, disse que teve que fechar o restaurante por causa da crise econômica. “Queremos salvar o país”, declarou, com a voz embargada. “Tenho três filhos e uma neta. Como vamos continuar com a Venezuela assim? Temos que defendê-la, e se essa é a maneira, assim será. Até vermos esse governo malandro, delinquente, sair, ainda que seja pela pressão das ruas, ainda que nos matem. Não importa”.
María Estela Rodríguez, de 51 anos, vive em uma outra Venezuela. Ela é coordenadora da Unidade Bolivariana Chavista Nossa Senhora do Guadalupe, um conjunto habitacional no centro de Caracas, onde estava mobilizando os eleitores para votar. “Estamos apoiando a pátria, para blindar todas as missões que já temos”, disse ela, referindo-se aos programas sociais. “Para que no dia de amanhã não venha outra vez a oposição tentar desfazer tudo. Para isso nos convocou nosso presidente: os mais humildes, o poder original. Terão que se ver com a gente. Porque temos muitos benefícios, mas queremos ampliar um pouquinho mais”.
A militantes chavista lembrou que “antes ninguém levava em conta a nós, humildes”, e continuou, numa linha bastante comum entre os que apoiam o governo: “Não tínhamos direito de estudar, à saúde, a um teto, a nada. Éramos muito sofridos, muito ignorados. Hoje em dia temos o benefício de viver no centro de Caracas, de estudar, de ter saúde, de ter uma pátria sólida. Antes estávamos ajoelhados diante do império. Agora somos soberanos e livres, ao contrário do que dizem, que somos ditadores. Aqueles é que são ditadores, que não querem que votemos. Somos muito participativos”.
Não há comunicação entre essas duas Venezuelas.
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