Com medo de represália do Taleban, muitos eleitores da província não votaram por causa da tinta indelével
KANDAHAR – A questão sobre quem ganhou as eleições de quinta-feira no Afeganistão tornou-se quase secundária diante de uma pergunta mais básica ainda: quem votou nessas eleições. Se em Cabul e mais ao norte do país formaram-se algumas filas pelo menos na abertura das seções eleitorais, em áreas de forte presença do Taleban, como Kandahar – seu “santuário” -, os intervalos entre um eleitor e outro eram de 10 a 20 minutos. Um levantamento feito na cidade indica que o comparecimento foi, no máximo, de 15%.
O alemão Felix Kuehn, autor do estudo, diz que esse número é extremamente conservador. “Um índice realista de comparecimento seria de 5%.” No interior da província de mesmo nome, e noutros redutos dos insurgentes na zona rural, pode ter sido até mais baixo. A província tem 1.080.000 eleitores registrados – de um total de 15 milhões em todo o país. Kandahar é um caso crítico, evidentemente. Mas em várias regiões do país, incluindo Cabul, o cenário não foi tão diferente assim.
Dados sobre o comparecimento só serão divulgados pela Comissão Eleitoral Independente (CEI) dentro de dois a três dias. Zekria Barakzai, funcionário da CEI, estimou à Associated Press que o comparecimento será de 40% a 50%. Esses números estão bem aquém dos 70% alcançados na primeira eleição presidencial do Afeganistão, em 2004, e bem além da impressão dos observadores independentes. Em Kandahar, o Estado conversou com 14 eleitores, dos quais apenas três votaram. Não é uma amostra válida, mas é difícil encontrar nas ruas da cidade alguém com a tinta indelével colocada no indicador direito de quem votou, e que leva semanas para apagar.
A tinta serve para evitar que os eleitores votem mais de uma vez. Mas nas áreas de maior presença do Taleban, ela funciona como um estigma mortal. Muitos eleitores poderiam até ter comparecido, confiando no forte esquema de segurança montado em torno das seções eleitorais e nas ruas. Em Kandahar, cidade de cerca de 700 mil habitantes, havia 10 bloqueios militares, nos quais os carros e motoristas eram revistados. As autoridades disseram ter frustrado seis “incidentes com explosivos” na cidade. Mas a tinta preta fez muitos deles recuar.
“Moro em Arghand (distrito rural de Kandahar), e o Taleban tem muita influência lá”, disse Sharif Ullah, de 29 anos, dono de uma mercearia. “Tive medo de que os taleban vissem meu dedo. Ouvi falar que eles iam cortar os dedos com tinta.”
“Não votei ontem porque não havia segurança”, resume Ahmad Ullah, de 25 anos, dono de um armazém. “Vi muitos panfletos na área onde vivo advertindo as pessoas a não participar da eleição”, conta Ullah, que mora em Sarpozah, bairro na periferia de Kandahar, onde os taleban libertaram há dois anos 2 mil militantes que estavam numa prisão, arrombando o portão com uma bomba.
Segundo Ullah, os panfletos diziam: “Aqueles que votarem serão punidos. Fique longe das seções eleitorais.” Se tivesse comparecido, no entanto, Ullah não teria votado de novo em Karzai, como em 2004. “Ele fez muitas promessas e não cumpriu. Todos os políticos são iguais.”
O caso de Ullah desmente a tese de que a abstenção alta prejudica Karzai, por ser da etnia pashtun, maioria nas áreas do sul onde os taleban são mais fortes. E não é um caso isolado, segundo Mussa Khan, jornalista em Kandahar. “Não acho que os pashtuns gostem do Karzai”, diz Khan. “Ele não fez nada para os pashtuns, só para outras etnias. Por exemplo, deu-lhes altos cargos e criou duas províncias, Panjshir, para os tajiques, e Daikondi, para os hazaras.”
A segunda explicação para a alta abstenção é a descrença com os políticos. “Não votei porque nenhum presidente vai ser honesto e trabalhar pelo bem do país”, explica o fazendeiro Golab Shah, de 20 anos. “Essa eleição é uma encenação.”
Agha Gul, de 25 anos, está entre os poucos eleitores que compareceram ontem em Kandahar, e para votar em Karzai. “Ele reconstruiu nosso país em poucos anos”, elogia Gul, técnico em computação na Agência de Cooperação Internacional do Japão. “O Afeganistão estava totalmente destruído pelas guerras. Ele precisa de mais tempo.”
“Não houve problema nenhum de segurança”, testemunhou Gul, ignorando os 15 foguetes disparados pelo Taleban contra Kandahar na quinta-feira. “Violência e luta existem no Afeganistão há 30 anos”, explica Mohammed Ali, de 54 anos, dono de uma confeitaria no centro da cidade, que votou no deputado Ramazan Bashardost, hazara como ele. “Não tive medo. Estamos acostumados.”
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