Foi o primeiro debate com a participação do presidente na história do Afeganistão, mas seu principal rival não compareceu
CABUL – Num país em que menos de oito anos atrás as mulheres não podiam estudar, trabalhar nem sair às ruas desacompanhadas de um homem e sem vestir uma burca, não deixa de ser uma mudança notável: os três candidatos a presidente que participaram ontem de debate pela televisão esforçaram-se para atrair o voto feminino. A promessa mais tentadora foi a de Hamid Karzai, o primeiro presidente afegão a participar de um debate eleitoral na TV: aumentar a proporção de funcionárias públicas, dos atuais 21% para 40%.
Mas os outros candidatos não quiseram ficar atrás. Ashrafi Ghani, ex-ministro das Finanças no governo Karzai, disse que, se for eleito, oferecerá dois ministérios a mulheres. E garantiu que não estava falando de um ministério de assuntos das mulheres, como o que foi criado por Karzai, que para ele tem pouca importância. “O Islã garante muitos direitos para as mulheres”, enfatizou Ghani. Ele é o quarto colocado, com 6%, na última pesquisa de intenção de votos, do Instituto Republicano Internacional (IRI), organização apartidária americana.
O ex-ministro do Planejamento e deputado Ramazan Bashardost lembrou que foi o primeiro a empregar mulheres em seu ministério. “Não devemos ver as mulheres como cidadãos de segunda classe, mas como seres humanos, que têm o direito de trabalhar”, disse Bashardost, terceiro colocado na pesquisa, com 10%. Duas mulheres estão entre os 36 candidatos a presidente, mas sem chances. Há também muitas candidatas aos conselhos das províncias, estimuladas por uma lei que destina 25% das cadeiras para as mulheres.
Karzai lidera todas as pesquisas. Na do IRI, divulgada na sexta-feira, ele aparece com 44% das intenções de voto. Em segundo lugar vem o médico Abdullah Abdullah, que foi seu chanceler, com 26%. Abdullah, que havia participado de um debate na TV no dia 23 com Ghani, no qual a ausência de Karzai foi duramente condenada, não compareceu ontem.
O governo de Karzai é acusado de corrupção e incompetência na gestão dos recursos doados pela comunidade internacional (US$ 30 bilhões). O presidente reconheceu: “Cometemos erros nesses sete anos, mas não os repetiremos no próximo governo.” Ele governa o Afeganistão desde 2002, quando foi escolhido por uma loya jirga (assembléia de líderes tribais) com apoio dos americanos e dos europeus. Em 2004, foi eleito presidente no primeiro turno, com 55,4% dos votos. Dessa vez, se as pesquisas se confirmarem, deve haver segundo turno seis semanas depois do primeiro, que será na quinta-feira.
Mas Karzai enfatizou também os progressos do país. Segundo ele, de 2002 para cá, a receita anual do governo subiu de US$ 180 milhões para US$ 3,7 bilhões. Bashardost replicou que a renda per capita subiu de US$ 180 para US$ 490 não por causa do aumento do Produto Interno Bruto, que segundo ele encolheu, mas por causa do comércio de drogas.
O Afeganistão é tradicionalmente o maior produtor de papoula do mundo, a matéria-prima do ópio e da heroína. Os cultivos aumentaram e surgiram laboratórios de refino da droga nos últimos anos. A revista alemã Stern noticiou na semana passada que forças especiais britânicas confiscaram toneladas de ópio em terras pertencentes a um meio-irmão do presidente, Ahmed Wali Karzai, que preside o Conselho Provincial de Kandahar. Ahmed Wali negou a acusação.
Karzai vangloriou-se de ter conseguido no último ano convencer a comunidade internacional de que “o santuário do terrorismo não está dentro do Afeganistão”, numa referência implícita ao Paquistão. Com isso, diminuíram as baixas de civis afegãos, disse ele. O presidente reafirmou que, se reeleito, promoverá uma loya jirga para buscar uma saída negociada para o conflito, com todos que “não estejam vinculados a serviços de inteligência de outros países” – outra referência ao Paquistão, cujo serviço secreto, Inter-Services Intelligence (ISI), ajudou a criar o Taleban, em 1993.
Bashardost e Ghani também são a favor de negociações: “Não se consegue a paz pela força”, repetiram eles. “As pessoas buscam apoio no Taleban porque sabem que não podem contar com os prefeitos e delegados de polícia”, criticou Bashardost. Ambos são nomeados pelo presidente. Ghani foi na mesma linha. Segundo ele, os problemas no Sul e no Leste, onde o Taleban concentra sua influência, “não são causados por divisões sectárias, mas pelo mau critério na escolha de governadores e prefeitos”. Abdullah, que não estava no debate, defende eleições diretas para todos os níveis.
Pela forma como chegou ao poder, recomendado pelas potências ocidentais na Conferência de Bonn (dezembro de 2001), Karzai é visto de forma positiva como o dirigente que tem apoio da comunidade internacional, mas também de forma negativa como subserviente aos interesses externos. Os candidatos da oposição procuram explorar esse ponto fraco. “Não sou candidato para fazer o que a comunidade internacional me mandar”, disse Ghani. “Meu maior objetivo é a integridade do Afeganistão.”
Igualmente, a veia conciliadora de Karzai e seu diálogo mesmo com países vizinhos cuja influência sobre grupos afegãos dificulta a solução do conflito podem ser elogiados ou criticados. “Os Estados Unidos, a Índia e o Irã são os causadores dos problemas do Afeganistão”, disse Bashardost. E, mais adiante: “Temos de mostrar ao Paquistão e ao Irã que o Afeganistão tem dono.”
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