O presidente Karzai tem dois trunfos: o apoio da comunidade internacional e dos afegãos comuns, cansados de guerra
CABUL – A intensidade da luz aumenta e diminui, ao sabor do inconstante suprimento de eletricidade, no Qasr Shahi, ou Palácio do Rei, onde o presidente Hamid Karzai mora e trabalha. Algumas janelas e paredes ainda guardam marcas de balas disparadas durante a guerra civil (1992-96). Sem poder confiar sua segurança a afegãos, Karzai é protegido por guarda-costas da empresa texana Dyncorp, contratada pelo Departamento de Estado americano. São sinais que fazem parte do dia-a-dia do presidente, lembrando-o de que tudo está por fazer no seu país.
Em 25 anos de guerras, que deixaram 1,5 milhão de mortos, a infra-estrutura do Afeganistão foi destroçada, assim como as residências, os negócios, os serviços públicos e as instituições. Oito anos depois do fim da guerra entre os mujaheddin (“combatentes da liberdade”), a maior parte das casas, prédios, palácios e monumentos atingidos por seus foguetes ainda não foi reparada, deixando por toda parte ruínas que dão às cidades afegãs um ar de sítio arqueológico.
Karzai tem de lidar com comandantes de milhares de milicianos remanescentes dessas guerras, armados até os dentes. E com uma arraigada produção de drogas, que constitui uma das bases da enfraquecida economia, e aparentemente está alimentando alguns dos grupos armados que tentam desestabilizar seu governo.
Seus maiores trunfos: o apoio da comunidade internacional e dos afegãos comuns, cansados de guerra.
As expectativas desses afegãos são enormes, entretanto. Bagher Ali Mardan representa 20 mil ex-refugiados que voltaram do Irã e do Paquistão e agora estão sem teto. “Os afegãos destruíram suas casas lutando entre si”, explica Mardan, ex-integrante dos grupos mujaheddin que, depois de expulsar os soviéticos, em 1989, passaram a disputar o poder entre si. “Eu destruí a mim mesmo”, lamenta o velho combatente, com um sorriso amargo. Segundo Mardan, os sem-teto que ele lidera votaram em Karzai. Agora, esperam que ele lhes dê casas. “É obrigação dele.”
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), cerca de 3,7 milhões de afegãos voltaram ao país depois da queda do Taleban, no fim de 2001. Outros 2 milhões continuam no Paquistão e 1 milhão, no Irã. Além deles, 170 mil afegãos tiveram de deixar suas casas – por perseguições ou extorsões – e vivem sem teto dentro do país. Somados, dão um quarto da população de 24,5 milhões de habitantes.
O Acnur destina US$ 120 milhões por ano aos refugiados nos três países. Desde 2002, o organismo forneceu material para a construção de 100 mil moradias no Afeganistão. “É o maior programa do Acnur”, diz Nader Farhad, porta-voz do organismo. Segundo Farhad, os afegãos em geral não pedem casa, mas um pedaço de terra para poderem construir. E só quem pode dar essa terra é o governo. “Fico contente de saber que eles têm a expectativa de que o governo lhes dê moradia.”
Durante a ocupação do Afeganistão (1979-89), os militares soviéticos adquiriram o hábito de percorrer as estradas asfaltadas do país com os seus tanques, alegando que as margens das rodovias estavam infestadas de minas. Todo o asfalto foi destruído nesse período. Grande parte da rede de eletricidade, telecomunicações e irrigação do país também ficou comprometida.
Estradas – Depois da expulsão soviética, seguiu-se a guerra civil, o período da maior destruição. Armados com fuzis e foguetes, os combatentes derrubavam transformadores e torres para vender como sucata. A partir de 1996, quando passaram a controlar 90% do território, os taleban restauraram algumas estradas e serviços – contando, para isso, com a ajuda do milionário saudita Osama bin Laden.
Isolado do mundo, com relações diplomáticas só com três países (Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), contando apenas com os parcos impostos alfandegários, o regime taleban não pôde fazer muita coisa. Até porque se mostrava mais preocupado em impor a observância de princípios morais medievais e destruir relíquias, obras de arte e livros considerados profanos – incluindo as pinturas a óleo do palácio e os volumes de anatomia das faculdades de medicina – do que em modernizar o país.
Em Jalalabad, nos cinco anos de governo, os taleban asfaltaram 3 quilômetros de ruas e avenidas dentro da cidade, a maior do leste do país, e outros 15 quilômetros de estradas. Em três anos, o novo governo está asfaltando 13 quilômetros só dentro de Jalalabad. “Na época dos taleban não havia dinheiro porque eles não recebiam ajuda de fora”, lembra o engenheiro Fazal Rabbi, que trabalha no Departamento de Estradas há 15 anos. “Agora, há.”
Os trepidantes 200 quilômetros de estrada de terra que separam Cabul de Torkham – parte da histórica Rodovia do Grande Entroncamento, ligando o Sul ao Centro da Ásia -, que hoje em dia levam mais de seis horas para serem percorridos, foram divididos em três trechos e estão sendo asfaltados por uma empresa turca, uma chinesa e uma paquistanesa, com financiamento da União Européia.
A presença dos operários estrangeiros gera renda na região. O técnico em mecânica Wahid Dulleih, de 38 anos, especializado em tanques de guerra, faz todos os dias o percurso de 40 quilômetros transportando os operários chineses do canteiro de obras para Jalalabad, onde estão alojados. “Na época dos taleban, a gente era obrigado a trabalhar de graça”, diz ele, contando que foi forçado durante três meses e fazer manutenção de tanques. No fim de 2001, depois que os taleban se retiraram de Jalalabad para Tora Bora, ele mudou de lado e foi pilotar um tanque da Aliança do Norte. “As coisas estão melhorando”, diz Dulleih. “Com a estrada boa, os preços das mercadorias vão baixar.”
Em dezembro, foi concluída a pavimentação de 439 dos 482 quilômetros da estrada ligando Cabul a Kandahar, a cidade mais importante do sul, quartel-general do antigo regime taleban. O trecho restante estava em boas condições. A duração da viagem caiu de 12 para 5 horas. A obra foi financiada pelos Estados Unidos (389 quilômetros) e pelo Japão (os outros 50).
Habituados a dirigir tão rápido quanto a estrada permite, os motoristas afegãos se excedem na nova rodovia. O Hospital Regional de Ghazni, por onde passa a rodovia, continua realizando 3 mil cirurgias por ano, como fazia durante a guerra. Segundo a secretária de Saúde da província, Ziagul Esfandi, os ferimentos em combates deram lugar aos acidentes de trânsito.
No Afeganistão se dirige na pista da direita, com o volante do lado esquerdo, como no Brasil. Mas a maior parte dos carros que circulam no país vem do Paquistão, onde se dirige na pista da esquerda, com o volante do lado direito, como na Inglaterra. Assim, os motoristas não têm visibilidade para ultrapassar. Freqüentemente, eles trocam de mão no meio da estrada, dirigindo em zigue-zague. Indiferentes aos apitos frenéticos dos novos guardas de trânsito treinados pelos alemães, os motoristas circundam as rotatórias das formas mais criativas. Até os semáforos foram destruídos. Os novos serão instalados pelos italianos.
De acordo com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid), os projetos de construção ou restauração envolvem mil quilômetros de rodovias principais e 1.500 de estradas vicinais. Do US$ 1,2 bilhão que a agência está destinando este ano ao Afeganistão, US$ 500 mil vão para infra-estrutura. O restante, para as áreas sociais e fortalecimento de instituições.
“Estradas são essenciais”, diz o tenente-corontel Gerald Timoney, comandante do Exército americano em Ghazni, cidade do sul por onde passa a rodovia. “Até os romanos sabiam disso.”
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