Adversários denunciam fraude, acusam ONU de apoiar presidente e boicotam votação
CABUL – Os 15 candidatos que ainda concorriam com o presidente interino Hamid Karzai na primeira eleição presidencial da história do Afeganistão anunciaram ontem o boicote à votação, afirmando que o processo foi “ilegítimo” e comprometido por “irregularidades”. Outros dois candidatos, do total de 18, haviam declarado apoio a Karzai na quarta-feira. Com isso, na prática, Karzai concorreu sozinho à eleição de ontem.
Segundo os candidatos, que se reuniram para fazer o anúncio, a ONU, que conduz o processo eleitoral no Afeganistão, estava apoiando Karzai, escolhido presidente do governo interino numa loya jirga (assembléia de líderes) de emergência em dezembro de 2001, em seguida à derrubada do regime taleban pelos Estados Unidos, com a ajuda da Aliança do Norte.
O órgão conjunto da ONU e do governo afegão encarregado de supervisionar as eleições, conhecido pela sigla em inglês JEMB (Joint Electoral Management Body), reconheceu num comunicado ontem à tarde que houve “problemas técnicos” nas eleições. “Mas o JEMB se sente encorajado porque o processo foi em geral seguro e ordeiro”, diz o comunicado. “Suspender a votação agora seria injustificável, mas todas as queixas serão examinadas.”
“Temos informações de um comparecimento impressionante em todo o país, com longas filas nas seções eleitorais, incluindo mulheres”, disse o porta-voz da ONU, o português Manuel da Silva. A porcentagem de comparecimento só deve ser anunciada hoje.O resultado oficial está previsto para o dia 30.
De uma população de 24,5 milhões de habitantes, 10,5 milhões de cédulas eleitorais foram distribuídas entre dezembro e agosto, das quais 41% para mulheres, apesar das ameaças da Al-Qaeda e dos taleban de sabotar a votação e de matar eleitores.
O JEMB admitiu que houve problemas de manhã com o uso da tinta colocada no polegar esquerdo dos eleitores para evitar dupla votação. Aparentemente, alguns dos 120 mil funcionários eleitorais se confundiram sobre que tinta deveria ser usada. O erro permitiu que vários eleitores apagassem a tinta e votassem de novo. Segundo os porta-vozes do JEMB, as instruções sobre o uso da tinta foram reforçadas e o problema foi em geral sanado no decorrer do dia.
Todos os eleitores com os quais o Estado conversou disseram que tinham votado em Karzai. Havia veículos circulando com cartazes do líder tajique Yunus Qanuni, ex-ministro do Interior, um crítico da presença americana no Afeganistão, e considerado um dos mais fortes oponentes de Karzai. Qanuni foi um dos que boicotaram a eleição, assim como a médica Massuda Jalal, única candidata mulher.
Às 10h, cerca de cem pessoas se reuniram na Praça Pakhtunistan, no centro de Cabul, e deram a volta caminhando em frente ao palácio presidencial, fortemente guardado por policiais e soldados do Exército. Com expressões de alegria, alguns tocando tambores, eles vinham cantando “Zindabar Karzai” (Viva Karzai). “Estamos celebrando nossa primeira eleição”, disse Abdul Salam Safi, de 29 anos, operário da construção civil. “Ninguém está com medo”, apostou Adji Ekham, um empresário de 42 anos, ao sair de uma das dez seções eleitorais da Mesquita Idgar, a principal de Cabul – um lugar que dificilmente seria atacado pelos terroristas islâmicos.
Praticamente todo o comércio estava fechado e o trânsito na cidade, bastante restrito, com muitas ruas – dando acesso a locais estratégicos como repartições do governo e embaixadas – bloqueadas. Somente veículos autorizados podiam se aproximar das seções eleitorais. Carros com placas de fora e caminhões não puderam entrar em Cabul nos últimos dias.
No incidente mais grave, um policial e três terrroristas foram mortos na província de Logar, perto de Cabul, durante ataque a uma seção eleitoral, segundo o Ministério do Interior. Três soldados americanos foram feridos num ataque ao sul de Cabul. “A maioria dos ataques a seções eleitorais pareceu não coordenada”, disse Lukfullah Mashal, porta-voz do ministério.
Dois terroristas suicidas foram presos na província de Nangarhar. Seis homens – quatro deles usando fardas falsas do Exército – foram presos tentando intimidar eleitores. Vários veículos carregados de explosivos e minas foram encontrados pelas forças de segurança.
Em todo o país, 14 mil policiais treinados pelos alemães e outros 29 mil soldados treinados pelos americanos vigiavam as 22 mil seções eleitorais e patrulhavam as ruas e estradas, apoiados por 9 mil soldados da Força Internacional de Assistência à Segurança (Isaf), liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, e por 17 mil soldados americanos.
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