Saem as execuções, entra em campo a seleção

O futebol, paixão dos afegãos, volta ao estádio que o Taleban convertera em palco de terror 

CABUL – Os afegãos são diferentes dos brasileiros em praticamente tudo. Em suas indumentárias saídas dos contos das mil e uma noites; nos casamentos arranjados entre primos; na reverência pelos mais velhos; em seu declarado gosto pela guerra; em sua religião e no fervor com que a seguem; no confinamento claustrofóbico das mulheres, simbolizado pela burka – tão persistente depois quanto antes do Taleban.

Mas há um traço em comum, e não é pouca coisa: o futebol.

Não pela qualidade dos jogadores, obviamente – nisso também os dois ocupam extremos opostos. “É só entusiasmo, mais nada”, resigna-se o ucraniano Aleksander Buyard, contratado há cinco meses como preparador físico da seleção afegã.

Mas pela paixão. O futebol é o esporte nacional afegão, embora perca em originalidade para o buzkashi, um precursor do pólo no qual os cavaleiros têm de atravessar o campo com uma carcaça de ovelha ou um prisioneiro decapitado – o que estiver mais à mão.

Há muitas narrativas para o absurdo passado recente afegão. O futebol é uma delas. Ontem à tarde, os jogadores da seleção regional de Cabul treinavam no mesmo estádio – aliás o único do país – que foi palco de alguns dos atos mais chocantes do regime taleban, em seus cinco anos de existência (1996-2001).

O Estádio de Cabul foi construído em 1973 pelo presidente Mohammed Daud, logo depois de assumir o poder, num golpe de Estado contra seu primo, o rei Zahir Shah. E destruído durante a guerra dos mujaheddin (1992-96), na qual o general usbeque Rashid Dostum – um dos candidatos a presidente que boicotaram a eleição presidencial de sábado – o transformou em seu quartel-general, impiedosamente bombardeado por seus inimigos. Entre eles, o general tajique Ahmed Shah Massud, assassinado por suicidas da al-Qaeda dois dias antes dos atentados de 11 de setembro de 2001. Seu retrato num outdoor domina hoje o estádio, ao lado de outros dois, do presidente Hamid Karzai e do imperador Ahmed Shah Baba, que fundou a dinastia no século 18.

Depois que os taleban tomaram, em 1996, o controle de Cabul e, com ela, de 90% do país, a ONU resolveu presentear os afegãos com a reforma do estádio – simbolizando a nova era de paz. Mas os taleban tinham outros símbolos em mente. Atraídos pelo futebol, que chega a reunir 22 mil pessoas no estádio, os afegãos eram induzidos a assistir a execuções de condenados à morte pelos mulás.

“Eu já era funcionário da Federação Afegã de Futebol nessa época e, quando ficava sabendo que ia haver execução, ia embora do estádio”, lembra Sayed Mozafari, hoje secretário-geral da entidade. “Nunca assisti a uma execução.” Milhares de afegãos assistiram. As execuções ocorriam nos intervalos, ou quando os taleban – que costumavam invadir o campo interrompendo os jogos para orações – considerassem conveniente. Por causa da oração das 17h, os jogos foram antecipados para as 14h. Já voltaram para o horário normal, mais adequado, em vista do calor desértico que faz no verão.

“Naquela época era tudo muito difícil”, recorda Bashir Soldat, de 26 anos, que joga na defesa do Sabol, um dos 18 times da primeira divisão, e foi escalado para a seleção de Cabul no primeiro campeonato nacional do país, que começa dentro de duas semanas. “Tínhamos de usar barbas compridas e jogar de shalwar kameez (a vestimenta tradicional dos afegãos, composta de túnica comprida e calça larga).” Calções e camisetas, como as que a seleção usa agora, doadas por ingleses que vieram dar um curso há uma semana, eram proibidos.

Bashir mora em frente ao estádio, e na época da guerra civil teve de se mudar com a família para o Paquistão. Depois de voltar, em 1996, formou-se engenheiro, e trabalha para se sustentar, como todos os outros jogadores. O futebol no Afeganistão é amador. Os jogadores recebem ajuda de custo de 50 afeganis (US$ 1) ao fim de cada treino, que agora está ocorrendo todos os dias, na preparação para o campeonato.

Os afegãos guardam na lembrança glórias passadas, como uma partida em que derrotaram o Irã, há 23 anos. Sustentado por um orçamento anual de US$ 280 mil para todas as categorias, doado pela Fifa, o futebol afegão acalenta expectativas modestas – de apenas poder seguir adiante, sem ser abruptamente interrompido, como faziam os taleban com as partidas. É só o que pede o Afeganistão também. 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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