Tradição de hospitalidade resiste à crise

Para o resto do mundo, a alegação do Taleban de que não poderia entregar Bin Laden aos EUA

SPIN BULDAK, Afeganistão – Porque ele era seu hóspede no Afeganistão soou talvez sarcástica e cínica. Pode ser que os dirigentes afegãos estejam mesmo agindo com cinismo. Mas as justificativas soam perfeitamente convincentes para o afegão e o paquistanês comum, coerentes com as leis do Islã e com as enraizadas tradições da etnia pashto.

Pela lei islâmica, um muçulmano tem de ser julgado por um tribunal islâmico.

Em se tratando de crime cometido noutro país — e desde que sejam apresentadas evidências —, ele pode ser julgado por uma corte internacional, da qual participem também juízes muçulmanos, interpretam os estudiosos.

Os patans, como são chamados os membros dessa etnia majoritária no Afeganistão e no Paquistão, encaram a chegada de um visitante como um presente de Deus. Quanto mais adversas forem as circunstâncias, mais forte se torna esse sentimento, porque, quanto maior o esforço, maiores a recompensa divina e o reconhecimento social. O pedido de um hóspede, desde que respeitoso, é como uma ordem vinda do céu. Ainda que se trate de algo exuberante e arriscado, como ingressar no Afeganistão com um jornalista estrangeiro precariamente disfarçado com vestimentas locais. Ao saber da presença do forasteiro, muitas famílias de Chaman apresentaram convites, em número impossível de atender. A hospitalidade pashto lembra o comportamento dos moradores das áreas rurais de qualquer canto do mundo, mas vem acompanhada de sinceridade e insistência incomuns.

A cada visita, por mais breve, é obrigatório sorver o chá preto com leite ou a infusão de erva doce importados do Sri Lanka. Se for hora da refeição, é imperdoável ofensa não se juntar aos moradores sentados num tapete ou esteira, ao redor de uma toalha sobre a qual se colocam as tigelas. Come-se com a mão e com a ajuda de pedaços de um pão no formato do sírio, mas maior e assado à lenha; a bebida é o shumlê, um leite ralo e azedo, muitas vezes servido numa única caneca grande, que passa de mão em mão.

A culinária afegã é simples e suave, embora pesada. Entre os pratos típicos estão o rush, a carne de cordeiro com dahl (pequeno cereal amarelo) em seu caldo, ou com quiabo; a cirtica, espeto de frango ou de carne vermelha; o pulau, arroz feito com pedaços de carne e passas; e a shorua, frango com pedaços de pão molhados no curry. Os homens comem na sala, onde nunca se vêem mulheres.

Os laços de família estão acima de tudo. Os primos se casam entre si e as famílias, numerosas, formam clãs, que por sua vez se juntam em tribos. Os membros de uma mesma tribo, que reúne milhares de pessoas, têm todos o mesmo sobrenome. São uma grande família e obedecem a seu chefe.

A pena de morte, amplamente adotada pelo Taleban, também é um recurso tanto da lei islâmica quanto do costume pashto. Segundo o Islã, se o membro de uma família mata o de outra, a família vitimada tem direito de matar o assassino. Ou pode perdoá-lo, ficando a seu critério. Os patans oferecem mais opções. A família do morto pode aceitar indenização da família do assassino, na forma de dinheiro ou de duas moças para casamento. O sangue derramado cria um laço de sangue.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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