O que a China reserva para Temer?

PORTO EM DALIAN, NA CHINA: o quadro econômico do país não é animador para o novo presidente brasileiro/ Reuters

Lourival Sant`Anna

A desaceleração da China foi talvez o único mal não auto-infligido que contribuiu para a ruína do governo Dilma Rousseff. As exportações brasileiras para a China despencaram com uma violência desproporcional à própria desaceleração: de 2011 para 2015, enquanto o crescimento do PIB chinês saía do patamar de 9,5% para o de 6,9%, as exportações caíram, ano a ano, 5,26%, 0,22%, 7,00% e 15,09%. E o que a China reserva para o governo de Michel Temer? O quadro não é animador. A desaceleração prossegue, enquanto o Império do Meio faz a sempre difícil — e, no seu caso, um tanto precoce — conversão de uma economia baseada nas exportações de manufaturados para outra impulsionada pelo consumo interno e com preponderância do setor de serviços, que hoje já representa mais da metade das riquezas.

O PIB chinês cresceu 6,7% no primeiro trimestre, pelo dado anualizado oficial. Foi a menor expansão desde a crise de 2008. No trimestre anterior, o índice havia sido de 6,8%. Ou seja, não há uma reação, principalmente considerando que o crescimento de 6,9% de 2015 foi o menor dos últimos 25 anos. Ainda por cima, alguns economistas põem em dúvida a credibilidade do número do primeiro trimestre deste ano. Pela primeira vez desde 2010, quando o Departamento Nacional de Estatísticas (NBS, na sigla em inglês) começou a anunciar o crescimento trimestral, não foi divulgado o dado comparado com o mesmo trimestre do ano anterior: 1,1%. Com base nessa informação, dizem especialistas, o crescimento anualizado do trimestre ficaria em 4,5%.

As dúvidas acerca do índice oficial levam os economistas a examinar outros dados, como o consumo de energia. E o comportamento desse setor em 2015 é revelador. A queda de consumo foi generalizada, mas mais acentuada nas regiões mais industrializadas: em Pequim, 6,17%; em Tianjin, 7,21; Hebei, 6.14; Cantão, 5,71%, e Jiangsu, 6,73%. Pelo critério do Valor Industrial Agregado (VIA), a diminuição da atividade desse setor fica ainda mais evidente, nas mesmas regiões: 8,16% em Pequim; 13,25% em Tianjin; 6,02% em Hebei; 10,47% em Cantão e 7,79% em Jiangsu.

O Índice dos Gerentes de Compras (PMI, na sigla em inglês) Caixin para o setor manufatureiro tem ficado constantemente abaixo da marca de 50, que representa estabilidade. Já o do setor de serviços fica acima dessa marca. Os investimentos do setor privado têm crescido a um ritmo cada vez menor. E o setor privado responde pela maior parte dos investimentos na indústria chinesa.

Na tentativa de impulsionar o crescimento e gerar empregos, os bancos estatais chineses ofereceram novas linhas de crédito no valor de US$ 1 trilhão no primeiro trimestre deste ano, o que representa um aumento de 42% em relação ao mesmo período do ano passado e um recorde histórico. “Para colocar isso em perspectiva, o boom do crédito no primeiro trimestre é maior que a economia da Indonésia e quase do tamanho do México”, ressalta Tony Nash, economista-chefe da empresa de consultoria Complete Intelligence, de Cingapura. “Apesar do reconhecimento de que uma economia movida a dívida não é o caminho, temos visto um aumento maciço do crédito neste ano na China.”

O déficit público aumentou de 2,1% em 2014 para 2,3% em 2015. Em março, os gastos do governo central cresceram 20%, enquanto a arrecadação aumentou 7%. “Finalmente, a capacidade de emprestar se deteriorou dramaticamente”, observa o consultor. “Os empréstimos aumentaram 12,6 trilhões de yuans no último ano, enquanto o PIB aumentou apenas 1,1 trilhão.”

Os empréstimos acabaram destinados às grandes empresas estatais, que investem relativamente pouco na indústria. O dinheiro público tem ido para projetos imobiliários, sobretudo nas grandes cidades, cujo mercado está aquecido.

A produção industrial cresceu 6,8% em março, comparada com igual período do ano passado, mas havia diminuído 5,4% nos dois meses anteriores. Em busca de mão-de-obra mais barata, as indústrias têm deslocado suas fábricas para países do Sudeste Asiático, como Indonésia, Vietnã, Filipinas, Camboja, Laos e Myanmar. Paralelamente, o comércio exterior chinês está encolhendo. As exportações caíram em nove dos dez últimos meses e as importações, nos últimos 18 meses seguidos. Em abril, a queda das exportações foi de 1,8%, frente ao mesmo mês do ano passado, enquanto as importações diminuíram 10,9%.

O governo chinês prometeu neste mês facilitar o acesso das empresas privadas ao mercado, como parte de medidas para impulsionar o setor privado. A Comissão de Regulação do Sistema Bancário ordenou aos bancos que diminuam as exigências para a concessão de empréstimos às empresas privadas. Entretanto, o ânimo dos empresários não ajuda, e quanto mais o governo tenta estimulá-lo, cresce o seu receio. “As empresas não estão encontrando projetos lucrativos, e não estão confiantes em relação ao futuro”, diz Zhu Baoliang, economista-chefe do State Information Centre, de Pequim, espécie de Ipea chinês.

O primeiro-ministro Li Keqiang procurou preparar a população, na reunião anual do Congresso Nacional do Povo, no mês passado: “O país enfrentará problemas maiores e mais difíceis neste ano, então temos de estar completamente prontos para enfrentar uma batalha dura”.  O plano quinquenal aprovado pelo Congresso prevê a redução da dívida, enxugamento de estatais e reforma do mercado financeiro, incluindo o combate à alavancagem no mercado de títulos, que ajudou a bancar a expansão dos créditos. Os critérios para autorizar financiamentos para a compra de casas também se tornaram mais seletivos.

“O principal foco do governo chinês no momento é transformar a economia sem criar uma ruptura alarmante”, observa Tony Nash. “O governo é na verdade muito sensível a impacto social. Eles sabem que precisam de um modelo de investimento mais efetivo e ferramentas de desenvolvimento mais sustentáveis, mas uma rápida transição poderia deslocar indústrias controladas pelo Estado ou tradicionais.” O consultor reconhece que isso acabará acontecendo: “Eles querem suavizar a explosão dessas mudanças estruturais inevitáveis. A maioria dos países tenta fazer isso por intermédio de barreiras comerciais, benefícios sociais ou outros meios. A China não é diferente, embora a escala de seu drama particular seja única.”

Shen Jianguang, economista-chefe da consultoria Mizuho Securities Ásia, de Hong Kong, prevê que o governo se concentre em medidas que impulsionem o crescimento, como a ajuda a pequenas e a novas empresas, mas relutará em impor reformas que possam prejudicar o crescimento. A conversão da economia de industrial para serviços deve causar a demissão de milhões de trabalhadores, cujos empregos são “exportados”. O Japão e Taiwan viveram esse processo. Entretanto, a China está se antecipando: sua população está longe do nível de prosperidade alcançado nesses países quando eles realizaram essa passagem.

Uma das válvulas de escape de geração de empregos em serviços da China têm sido as obras de infra-estrutura na África, executadas por operários e engenheiros chineses, com financiamento do Eximbank chinês. Até 2025, os investimentos somam US$ 1 trilhão. A China é a maior investidora em infra-estrutura do continente. A construção civil no próprio país tem exercido o mesmo papel. Essa transferência tem em geral dado conta de compensar o fechamento de vagas na indústria. O índice de desemprego tem se mantido estável no patamar de 4%. Mas os empregos no setor de serviços têm uma qualidade muito mais variável que os da indústria, e em geral são piores.

Além disso, o desempenho da economia chinesa depende, também, de fatores externos, como a taxa de juros nos Estados Unidos. O Banco Central americano não deu continuidade ao aumento dos juros do início de dezembro para evitar, entre outros motivos, que a decorrente valorização do dólar provocasse uma fuga de capitais da China, agravando os seus problemas. Mas em algum momento o Fed pode acreditar que seja hora de retomar os aumentos de juros.

Portanto, o Brasil e outros países exportadores de commodities não devem apostar suas fichas em uma recuperação da demanda chinesa e, por extensão, mundial. Ao pôr fim ao ciclo das matérias-primas caras, a China ajudou a precipitar o enfraquecimento do populismo de esquerda na América do Sul. Esses países terão agora de seguir adiante com as suas reformas, até porque a China também está fazendo a sua tarefa de casa — e, mesmo que o seu ritmo seja um pouco lento, ela provavelmente jamais será a mesma.

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