O vermelho e o amarelo da delegação chinesa se mesclam na tela da TV com o reflexo do azul da lanterna giratória dos carros da polícia, que passam para lá e para cá
CHENGDU, China – Os freqüentadores do restaurante tibetano se mantêm impassíveis, sua mente imperscrutável, enquanto assistem desfilar as bandeiras e atletas que supostamente representam o “seu” país – a China, que ocupa militarmente o Tibete desde a Revolução Comunista de 1949.
Sobre o televisor, um pôster azulado mostra Mao Tsetung, o líder da revolução, caminhando alegremente entre dois tibetanos. No canto esquerdo da parede, uma foto do Dalai Lama, o líder espiritual do Tibete, vestido com as cores tradicionais do budismo, o amarelo e o vermelho, parece burlar-se do jogo de cores. A imensa maioria dos chineses nunca ouviu falar do Dalai Lama. Uma engenheira eletrônica de 24 anos me conta que só ficou sabendo de sua existência há dois anos, quando viajou para fora da China. Mas sua imagem está em quase todas as lojas e restaurantes do bairro.
Este é meu terceiro dia em Chengdu, e é a primeira vez que vejo policiais. Todos parecem estar na Ximianqiao Hengjie (Rua da Ponte Onde se Lava o Rosto), a via principal do bairro tibetano de Chengdu, o maior da China (fora do Tibete, naturalmente), onde vivem cerca de 10 mil tibetanos. A entrada e a saída da rua são controladas por policiais armados de metralhadoras. A cada vez que se olha para a rua, vêem-se carros e motos da polícia, além de veículos típicos dos agentes de segurança à paisana, com as indisfarçáveis lanternas giratórias no teto. Enquanto minha intérprete e eu conversávamos com os tibetanos nas lojas, um policial parou sua viatura no meio da avenida, atrapalhando o tráfego, para observar-me. Eu caminhava, ele avançava. Eu parava, ele freava.
A polícia controla o bairro desde os protestos de março no Tibete pelo 49º aniversário da ocupação chinesa, duramente reprimidos. A partir de então, disse a dona de uma loja de roupas e artesanato do Tibete, tem sido praticamente impossível para os tibetanos que vivem no interior da província de Sichuan virem a Chengdu, a capital. Os turistas também desapareceram, com medo de atentados.
As autoridades chinesas anunciaram que estavam investigando quatro tibetanos suspeitos de transportar 200 quilos de explosivos para Chengdu, onde planejavam realizar atentados.
Estrangeiros só entram no Tibete em grupos com guias e autorização do governo chinês. Desde março, jornalistas estão proibidos de entrar. “Eles dizem que os estrangeiros apóiam o Dalai Lama”, comentou sorrindo a dona de outra loja. O separatismo tibetano, assim como o separatismo uigur (muçulmanos de origem túrquica do noroeste do país) é tabu na China. O Tibete e a Região Autônoma Uigur de Xinjiang somam 2,9 milhões de km² – 30% do território da China. Ambos são regiões estratégicas, com vastas fronteiras e minérios – sem falar no seu valor político e simbólico.
Assim como os uigures, os tibetanos são vistos com enorme desconfiança pela maioria han. Os taxistas de Chengdu não pegam passageiros tibetanos, e dizem que eles são “perigosos” e “ladrões”. É o mesmo que dizem sobre os uigures os taxistas hans de Ürümqi e Kashgar, em Xinjiang. A repressão de março – que deixou 20 mortos segundo as autoridades chinesas e 203 segundo o governo tibetano no exílio – foi seguida de protestos na Europa contra a passagem da tocha olímpica, e de manifestações pelo boicote aos Jogos de Pequim. Ontem, na cerimônia de abertura, repleta de chefes de Estado, tudo isso parecia distante – tão distante quanto o presumível sonho de independência dos tibetanos.
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