O vicioso ciclo sul-coreano

PROTESTOS EM SEUL: os Estados Unidos puxam para um lado e a China, para o outro/ Kim Hong-Ji/ Reuters

A cada instante, uma parte do mundo atinge seu ponto de ebulição. Esta é a vez do Leste Asiático. Não bastasse o calor produzido pelos testes com mísseis norte-coreanos, as investidas chinesas contra o arquipélago japonês de Senkaku e a inquietante gestão de Donald Trump, agora a Coreia do Sul ferve com o impeachment da presidente conservadora Park Geun-hye e sua provável substituição pelo líder da esquerda moderada, que pretende reposicionar o país no já tumultuado tabuleiro da região.

Moon Jae-in, candidato do Partido Democrata, lidera as pesquisas da eleição presidencial sul-coreana, que deve acontecer dentro de no máximo dois meses, com 30% das intenções de voto. Moon propõe a retomada da cooperação e do diálogo com a Coreia do Norte e uma revisão da decisão de instalar um sistema antimísseis americano no território sul-coreano, que incomoda profundamente a China. Seria a retomada da chamada “política do brilho do sol”, conduzida entre 1998 e 2008 pelo então presidente  Roh Moo-hyun, do qual Moon foi ministro-chefe da Casa Civil.
Moon promete reabrir, por exemplo, a joint venture no complexo industrial de Kaesong, na fronteira entre os dois países, que gerava 53 mil empregos para os necessitadíssimos norte-coreanos. O programa foi encerrado em janeiro do ano passado pela presidente Park, depois que a Coreia do Norte realizou um teste nuclear. O Parlamento aprovou o impeachment de Park em dezembro, por 234 votos a 56, por causa de um escândalo envolvendo sua amiga de infância, confidente e conselheira Choi Soon-sil, acusada de extorquir milhões de dólares de empresas sul-coreanas, aproveitando sua influência sobre a presidente. Nessa sexta-feira, a Corte Constitucional confirmou por unanimidade (oito votos a zero) a destituição de Park.
Antevendo o risco de uma reversão no acordo que permitiu a instalação do sistema de defesa Thaad (Terminal High Altitude Area Defense), o Comando do Pacífico das Forças Armadas americanas começou a implantá-lo na terça-feira 7, um dia depois de a Coreia do Norte disparar quatro mísseis no Mar do Japão, dentro da zona econômica exclusiva japonesa (no raio de 200 milhas de sua costa).
Embora os Estados Unidos insistam que o sistema serve de proteção contra a Coreia do Norte, a China se sente ameaçada por ele. Em retaliação à instalação da bateria antimísseis, o governo chinês ordenou o fechamento de empresas sul-coreanas que operam na China e proibiu turistas chineses de visitar a Coreia do Sul.
Moon adverte que a instalação do Thaad pode causar uma nova Crise dos Mísseis, como a que levou o mundo à beira da 3.ª Guerra, por causa da instalação de mísseis soviéticos em Cuba. “Não entendo por que tem de haver tanta pressa nisso”, criticou o candidato. “Suspeito de que estejam tentando criar um fato consumado antes das eleições.” Seus pais fugiram do regime comunista norte-coreano em 1950, e ele condena a ditadura em Pyongyang. Mas, por outro lado, argumenta que as políticas dos governos conservadores em Seul não evitaram que a Coreia do Norte levasse adiante seu programa nuclear e de aperfeiçoamento de mísseis.
“Precisamos acolher o povo norte-coreano como parte da nação coreana e, gostemos ou não, temos de reconhecer Kim Jong-un como seu líder e nosso parceiro de diálogo”, afirma Moon, referindo-se ao incendiário ditador de 33 anos. “Se necessário, teremos de fortalecer as sanções, mas seu objetivo deve ser trazer a Coreia do Norte de volta para a mesa de negociações.”
Entretanto, a política de apaziguamento do presidente Roh também não surtiu muito efeito. Em 2006, quando ele — e Moon — estavam no governo em Seul, a Coreia do Norte, na época governada pelo pai de Jong-un, Kim Jong-il, realizou o seu primeiro teste nuclear. De lá para cá, foram mais quatro. As coisas só pioraram a partir de 2013, com a chegada ao poder de Jong-un, ainda mais agressivo e imprevisível que seu pai.
Moon não tem uma posição necessariamente hostil contra os Estados Unidos. Ele considera os americanos “amigos” da Coreia do Sul, agradece-lhes por haverem protegido seu país do comunismo e afirma que a aliança com os EUA é um “pilar da democracia” sul-coreana. Entretanto, pondera que a Coreia do Sul “precisa aprender a dizer ‘não’ aos americanos”.
A embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Nikki Haley, descartou na terça-feira 7 a possibilidade de retomada do diálogo com a Coreia do Norte, qualificando a proposta de “irracional”. Haley acrescentou que os EUA estão reformulando sua política em relação a Pyongyang. “Estamos considerando todas as opções”, disse ela. Durante a campanha, Trump colocou em dúvida o cumprimento do tratado de defesa mútua firmado com o Japão nos anos 50, por causa dos custos de uma eventual operação militar. Ele também acenou com a possibilidade de negociar com Jong-un: “O que há de errado em conversar?” Entretanto, no dia 12 de fevereiro, durante reunião com o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, em seu balneário de Mar-a-Lago, na Flórida, Trump afirmou que os EUA estão “100% ao lado do Japão”, depois que a Coreia do Norte fez outro teste com mísseis. Em seguida aos novos disparos do dia 6, Trump voltou a usar a mesma expressão — e dessa vez incluiu a Coreia do Sul, que havia sido “esquecida” na garantia anterior.
Tanto Abe quanto Trump consideraram que o disparo quase simultâneo de quatro mísseis “eleva a ameaça a um novo patamar”. Se vários mísseis são disparados de uma só vez, alguns deles podem atravessar a cortina do sistema de defesa americano instalado no Japão.
Na véspera do teste norte-coreano, Abe já havia dito na convenção de seu Partido Liberal Democrata — que mudou as regras para que ele possa se candidatar a presidente do partido e portanto se lançar a primeiro-ministro pela terceira vez no ano que vem — que pretende mudar a Constituição do Japão para que suas Forças Armadas possam realizar ações preventivas. Hoje elas só podem reagir a ataques. O governo também fala em aumentar o gasto com defesa, atualmente na casa do 1 por cento do PIB. O dos EUA supera os 3 por cento, e Trump tem se queixado de seu país ter de arcar com a defesa dos aliados.
A Península da Coreia é um exemplo clássico de uma tensão que se retro-alimenta. Como já aconteceu várias vezes, os disparos de mísseis norte-coreanos foram uma represália contra o início de exercícios militares conjuntos entre as Forças Armadas sul-coreanas e americanas — que mantêm 28.500 militares na Coreia do Sul.
“Nos corações dos artilheiros havia um desejo ardente de retaliar impiedosamente contra os belicistas que prosseguem em seus exercícios de guerra conjuntos”, descreveu a agência de notícias estatal norte-coreana KCNA, em seu palavreado épico.
Por sua vez, ambos os países, assim como o Japão, que também mantém bases e baterias antimísseis americanas no seu território, afirmam que os exercícios e a presença militar dos EUA são necessários por causa da contínua ameaça norte-coreana.
A aspiração de Moon é romper esse círculo vicioso, e encontrar um ponto de equilíbrio entre as duas potências militares rivais no Pacífico. “Os Estados Unidos estão nos empurrando para o Ocidente desnecessariamente, e a China está nos arrastando para o Oriente desnecessariamente”, descreve Kim Ki-jung, cientista político da Universidade Yonsei, de Seul, e conselheiro de política externa de Moon. “Eles não deveriam nos pressionar demais. A resistência contra as grandes potências faz parte do DNA coreano.”
O problema é que os norte-coreanos compartilham do mesmo DNA. E seu conceito de ameaça — e principalmente de como reagir a ela — é bastante peculiar.

(A convite do governo japonês)

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