Lourival Sant’Anna
Normalmente, pertencer à família do governante, numa ditadura, em que não existem leis sobre nepotismo, costuma ser bom. Não em lugares onde a disputa do poder segue a trama das tragédias shakesperianas, como na Coreia do Norte. Desde que Kim Jong-un ascendeu ao poder, em 2012, já houve duas baixas na sua família: o tio Jang Song-taek, que ele mandou executar em dezembro do ano seguinte, e o meio-irmão Kim Jong-nam, assassinado nessa terça-feira no Aeroporto de Kuala Lumpur (Malásia), provavelmente por envenenamento. O tio e o sobrinho eram próximos, segundo relatos em Pyongyang.
Ambos faziam sombra ao poder absoluto do “líder supremo” de 32 anos, terceiro numa dinastia comunista iniciada em 1948 por seu avô, Kim Il-sung, e continuada por seu pai, Kim Jong-il, que morreu em 2011. O tio Jang era considerado o segundo homem mais poderoso depois de seu cunhado, e teria assumido o poder de facto a partir de 2008, quando a saúde de Jong-il se debilitou. Até ser acusado em um julgamento orquestrado pelo sobrinho de ser “contrarrevolucionário” — o equivalente a traição à pátria.
Já o meio-irmão Jong-nam era o primogênito de Jong-il, e portanto o sucessor natural do pai. Mas caiu em desgraça em 2001, quando foi detido no Aeroporto de Narita, no Japão, com um passaporte dominicano falso. Ele disse às autoridades japonesas que queria conhecer a Disneylândia de Tóquio.
Jong-il não achou graça do passeio do filho, tido com sua amante favorita (que tentou esconder do pai), a atriz Song Hye-rim. E passou a preparar seu segundo filho, Jong-un, fruto de relacionamento com outra amante, para ser seu sucessor.
No ano da ascensão do meio-irmão, Jong-nam foi vítima de uma tentativa de assassinato. Temendo pela própria vida, ele passou a morar entre Pequim, onde tem uma mulher, e Macau, onde tem outra, sob proteção da China. Viajar com passaportes falsos tornou-se então um hábito. Ele trazia um documento com o nome Kim Chol quando uma mulher segurou sua cabeça por trás, numa área de check-in de classe econômica do aeroporto de Kuala Lumpur, onde pretendia embarcar para Macau. Segundo relatos na imprensa malaia, duas mulheres espalharam um químico em seu rosto com um spray. Jong-nam, de 46 anos, disse aos funcionários de um balcão de informações que estava tonto. Ele foi levado para o ambulatório do aeroporto, e de lá para um hospital, mas morreu no caminho.
Uma suspeita foi detida. Ela portava documentos vietnamitas no nome de Doan Thi Huong, nascida em 1998. A polícia procura vários outros envolvidos, todos estrangeiros. Uma imagem de uma câmera de circuito interno do aeroporto mostra uma das suspeitas, com uma camiseta com as letras LOL (que pode significar “Leagues of Legend”, um jogo online, ou “lots of laugh”, sigla para “risos” nas mensagens digitais).
Funcionários do governo norte-coreano ficaram durante horas nesta quarta-feira tentando, sem sucesso, dissuadir as autoridades malaias de realizar uma autópsia no corpo de Jong-nam, segundo a agência Reuters. A embaixada norte-coreana em Kuala Lumpur afirmou não ter informações sobre a morte dele, embora um carro com a bandeira do país tenha sido visto saindo do hospital. A morte de Jong-nam não foi noticiada na Coreia do Norte.
Depois de uma reunião com agentes da inteligência da Coreia do Sul, deputados sul-coreanos contaram que Kim Jong-un havia emitido uma ordem de assassinato de seu meio-irmão, e que Jong-nam lhe enviara uma carta pedindo clemência: “Não temos para onde ir. Estamos bem conscientes de que a única escapatória é o suicídio”.
O jornalista japonês Yoji Gomi, autor do livro “Meu pai, Kim Jong-il, e eu”, de 2012, sobre a história de Jong-nam, disse que ele intensificou as aparições na mídia naquele ano da primeira tentativa de assassinato, para tentar se preservar, ampliando a repercussão de novos atentados. Mas isso provavelmente teve o efeito contrário, de exasperar o ditador.
Jong-nam era crítico do regime. Defendia a introdução da democracia e da economia de mercado na Coreia do Norte. Ele dizia abertamente que seu meio-irmão não tinha dom para governar, embora ambos nunca tenham se encontrado pessoalmente: pela tradição norte-coreana, potenciais sucessores são criados separadamente. Mas não é preciso conhecer Jong-un muito de perto para concluir isso.
Também não ajudou a deserção, em agosto, do vice-embaixador norte-coreano em Londres, Thae Yong Ho, para a Coreia do Sul. Thae foi o diplomata de mais alto nível a desertar. “Kim Jong-un pode ter ficado preocupado com mais e mais norte-coreanos da elite se voltando contra ele, depois da deserção de Thae Yong Ho para o Sul”, analisa Koh Yu-hwan, especialista em regime norte-coreano na Universidade Dongguk, em Seul.
Jong-un está nervoso, e desconta no mundo. No sábado, a Coreia do Norte testou mais um míssil balístico, enquanto o presidente americano, Donald Trump, entretinha o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, em seus balneários na Flórida. Foi a primeira provocação de Pyongyang depois da posse do presidente, dia 20. Em meio a um jantar com vários convidados, Trump e Abe começaram a examinar relatórios de inteligência, à luz dos celulares de assessores. Fotos dessa cena foram postadas no Facebook, provocando críticas sobre a falta de cuidado de Trump com informações confidenciais (ironicamente, uma das principais acusações contra Hillary Clinton na campanha, por causa do uso de um servidor de email privado quando ela era secretária de Estado, entre 2009 e 2013).
Antes do jantar, jornalistas haviam perguntado a ambos a respeito do teste norte-coreano, mas eles não responderam. A imprensa que acompanha Trump havia sido avisada que não haveria mais coberturas naquele dia. Entretanto, duas horas mais tarde, os jornalistas receberam mensagens urgentes avisando que Trump e Abe voltariam a se encontrar com a imprensa.
Abe foi o primeiro a falar, em japonês, com tradução de um intérprete: “O mais recente lançamento de míssil da Coreia do Norte é absolutamente intolerável. A Coreia do Norte precisa cumprir completamente as resoluções do Conselho de Segurança da ONU pertinentes. Durante a reunião de cúpula que tive com o presidente Trump, ele me assegurou que os Estados Unidos sempre estarão cem por cento com o Japão e, para demonstrar sua determinação e compromisso, ele está aqui comigo nesta entrevista coletiva conjunta”.
Era a senha para Trump assumir a tribuna: “Quero que todo mundo entenda e saiba completamente que os Estados Unidos da América se colocam ao lado do Japão, seu grande aliado, cem por cento”. Sem mencionar a Coreia do Sul, outro aliado importante ameaçado pelo vizinho do norte, e sem responder perguntas, os dois se retiraram.
E foi assim que o Japão recebeu uma garantia concreta de que o pacto de defesa mútua firmado em 1952, depois da 2.ª Guerra Mundial, será honrado por Trump. Durante a campanha presidencial, ele havia colocado em dúvida o interesse dos EUA de defender o Japão, assim como os aliados do Leste Europeu na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mas depois da reunião de sexta-feira na Casa Branca Trump se comprometeu com o tratado.
Com Jong-un de um lado e Trump do outro, as coisas andam rápido.
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