Lourival Sant’Anna, de Tóquio
A rejeição de Donald Trump à Parceria do Transpacífico (TPP) puxa o tapete de toda uma estratégia cuidadosamente desenhada pelo Japão (e pelos EUA de Barack Obama) para fazer frente à ascensão da China e obter o máximo de proveito do espetacular potencial dos mercados da Ásia e Oceania. Mais que isso, rouba um dos dois motivos para os japoneses sonharem com uma saída de sua estagnação econômica. O outro é a Olimpíada de Tóquio em 2020.
Como em todo trauma, os japoneses entraram no modo negação. Vários diplomatas e analistas em Tóquio consideram que a TPP não está morta — ainda que tenham de mudar seu nome, como saída honrosa para Trump.
“Não tenho certeza de que os EUA saíram completamente da TPP”, ponderou a EXAME Hoje Shingo Yamagami, diretor do Instituto de Assuntos Internacionais do Japão. “Quando (Bill) Clinton chegou à Casa Branca, era contra o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), mas depois o aprovou. Quando (Barack) Obama assumiu, era contra o acordo de livre comércio com a Coreia do Sul e depois mudou de opinião. Temos de distinguir o que foi dito na campanha do que será implementado na Casa Branca. Não excluo a possibilidade de os EUA reverterem para algo semelhante ao TPP.”
O primeiro-ministro Shinzo Abe, o único governante que já se reuniu duas vezes com Trump desde sua eleição, está trabalhando intensamente nisso. “Abe mencionou várias vezes no Parlamento que está tentando convencer os Estados Unidos a voltar”, observa Yorizumi Watanabe, professor de economia política internacional da Universidade Keio. “Mas a retirada da TPP foi um tema importante desde o início da campanha de Trump, e ele não está pronto para mudar de ideia.”
“Lamentamos muito a saída de Trump da TPP”, afirma Heizo Takenaka, ex-ministro da Economia e ex-colega de Abe no gabinete de Junichiro Koizumi (2001-2006). “Trump quer negociações bilaterais, mas não temos certeza de que o governo japonês aceitará isso. A TPP é um acordo histórico. Abe será muito paciente em tentar convencer Trump a aceitá-lo.”
O Chile convidou os outros 11 países signatários da TPP (Austrália, Brunei, Canadá, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Estados Unidos, além do próprio Chile), e mais a China, a Coreia do Sul e a Colômbia para uma reunião de cúpula sobre comércio nos dias 14 e 15. A Colômbia participa com o Chile, México e Peru da Aliança do Pacífico, e era também candidata a entrar na TPP. Os membros da TPP, com exceção dos EUA, realizarão uma reunião paralela. Eles vão para discutir a viabilidade da fórmula “TPP menos 1”, ou seja, como seguir adiante sem os EUA.
O acordo não pode entrar em vigor com os outros 11 participantes por causa de uma cláusula segundo a qual ele só é válido com a participação de no mínimo 85% do PIB de seus membros fundadores. Sem os EUA (ou sem o Japão), é impossível atingir essa marca.
“Os outros 11 até poderiam criar um acordo idêntico, sem a cláusula dos 85%, mas na prática sem os EUA o impacto é muito menor”, avalia o economista Kenichi Kawasaki, do Instituto Nacional de Pós-Graduação em Estudos de Políticas (Grips), de Tóquio. “A TPP não está morta, mas é improvável que os EUA participem com Trump. Precisaremos esperar quatro anos. Ou oito”, completa ele sorrindo, numa referência à possibilidade de Trump se reeleger.
A expectativa de Kawasaki é que EUA e Japão avancem em negociações bilaterais, como quer Trump, e depois esses acordos “se espalhem” gradualmente para outros países da TPP, começando pelos mais avançados: Austrália, Nova Zelândia e Cingapura. Kawasaki e sua equipe se dedicam a estimar o impacto econômico da entrada dos países na TPP. Como exercício de simulação, eles calcularam, por exemplo, que a Grã-Bretanha — que não banha o Pacífico — teria mais vantagens na TPP do que na União Europeia. Toda essa atratividade se deve ao fato de que a TPP é muito mais do que um acordo de livre comércio, apontam os especialistas: envolve também a liberalização de serviços, incluindo os financeiros, harmoniza as leis sobre investimentos e, ainda mais importante, abre os contratos governamentais à concorrência de todos os países membros. Além disso, nivela as regras trabalhistas, retirando muito da vantagem que a China e os países emergentes do Sudeste Asiático têm com relação aos encargos sociais.
A China foi excluída da TPP como parte de uma estratégia declarada de Obama na qual os Estados Unidos desenhariam as regras do comércio no Pacífico, e só depois os chineses embarcariam, com o bonde andando. Com a China, os países do Pacífico negociam paralelamente desde março de 2013 a Parceria Regional Econômica Ampla (RCEP), que inclui também o Japão, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Coreia do Sul, Cingapura, Malásia, Tailândia, Filipinas, Vietnã, Mianmar, Indonésia, Laos, Camboja e Brunei. Esse acordo, no entanto, alcança apenas 80% dos produtos desses países, enquanto a TPP chega a quase 100%, observa Kawasaki.
O Japão, por exemplo, ofereceu tarifa zero para 95% de seus produtos, e manteve as altas tarifas para as suas commodities consideradas “sagradas” — arroz, trigo, carne bovina e suína, laticínios e açúcar — que no entanto em valor representam entre 50% e 60% de seu mercado de produtos agrícolas. Segundo Kawasaki, o Japão não avançaria mais que isso em nenhum acordo, hoje. “Esses 95% representam uma mudança drástica com relação às ofertas anteriores do Japão, que eram de 90%”, analisa o especialista. Os 5% acrescentados se referem a verduras frescas e frutas. “Tudo, com exceção das cinco sagradas. Seria muito difícil avançar, e dizemos isso porque somos educados. Na verdade, é impossível.”
A estratégia japonesa era usar a TPP para pressionar a China a avançar nas negociações da RCEP. Agora, com a saída de Trump, esse incentivo deixa de existir, reconhece o especialista. A questão é de saber se a RCEP poderia passar a exercer o papel inverso: de pressionar os EUA a reavaliar sua saída da TPP. Mas esse cenário no momento é improvável.
“Logo depois da conclusão da TPP (fevereiro de 2016), participei de uma conferência na China, em que havia um pessoal do governo chinês muito nervoso com o acordo”, recorda Kawasaki. “Entre os economistas chineses, metade apoia a entrada do país na TPP e a outra metade, não. Eu digo aos chineses que eles não precisam ter medo, podem entrar.” Já na RCEP, a China participou da criação. “De acordo com a minha simulação, a China seria o grande beneficiário da RCEP, por ser a maior economia do bloco”, afirma Kawasaki.
Com a eleição de Trump em novembro, começaram a circular interpretações de que a Austrália tentaria substituir os EUA pela China na TPP. “Acho muito estranha essa ideia, porque já temos as negociações da RCEP”, analisa Watanabe. “Talvez a intenção da Austrália seja não perder os países latino-americanos”, continua ele, referindo-se ao México, Chile e Peru, que estão na TPP mas não na RCEP. “Mas continuaremos a integração. A China está interessada na RCEP. Esperamos que o Japão e a China trabalhem juntos para fazer a RCEP avançar.”
Essa possível cooperação é o aspecto mais estratégico da RCEP. China e Japão vivem sob constante tensão por causa da disputa sobre as ilhas Senkaku, administradas pelos japoneses e reivindicadas pelos chineses. Um pouco como aconteceu nos anos 80 com o Mercosul, cujo objetivo principal foi distender as relações entre Brasil e Argentina, a aproximação comercial é vista por todos os analistas como um meio de evitar a deterioração nas relações das duas maiores economias asiáticas.
Numa amostra da relação entre grau de desenvolvimento e de concessão em negociações de acordos amplos como a TPP, Kawasaki diz que o Japão precisaria emendar apenas cinco leis sobre extensão de direitos de propriedade para se ajustar aos termos da parceria. Nas áreas de investimento direto, contratos governamentais, regras sanitárias e trabalhistas, nada precisa mudar no Japão, afirma o especialista. Já na Malásia, 20 leis trabalhistas precisariam ser alteradas. “A Malásia participa sem problemas.”
Com relação aos países latino-americanos, Kawasaki observa que o Japão tem “ótimas relações de longo prazo”, e um acordo bilateral já firmado com o Chile e outro em negociação com a Colômbia. “Estive duas vezes em Santiago”, conta o especialista. “Mas, nas relações econômicas, a distância importa. Por isso, priorizamos os mercados vizinhos.”
“A Ásia é muito promissora para as companhias japonesas”, concorda Osamu Katano, economista-sênior da trading Mitsui. “Independentemente da TPP, as pessoas acham que é o melhor lugar para investir.”
Kawasaki chama a atenção para o fato de que nem tudo são cortes de tarifas nas relações comerciais. “Tenho muita expectativa em negociações bilaterais sobre questões financeiras”, diz ele. “Repare que a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional sempre se reúnem separadamente. Por que não se juntarem? Uma mudança de 5% nas tarifas importam, mas uma depreciação de 10% na moeda também importa para o comércio.”
Ainda assim, Kawasaki vê a TPP como a “medalha de ouro” da Abenomics, a estratégia do primeiro-ministro Shinzo Abe de tirar o Japão da estagnação com o tripé juro baixo, gasto público e reformas estruturais. “Todas as medidas macroeconômicas, monetárias, financeiras e fiscais já foram tomadas”, observa o economista. “O impacto disso é limitado. Se não tivéssemos a TPP e a Olimpíada, por que os japoneses acreditariam no futuro?”
(A convite do governo japonês)
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