Brasileiro foi alvo de espionagem

Embaixador do Brasil na RDA entre 1978 e 1985, Mário Calábria descobriu que era vigiado até pelos amigos

BERLIM, Alemanha – A natureza do Estado policial que vigorou na República Democrática Alemã (RDA) entre 1949 e 1989 está viva na memória de um brasileiro. Mário Calábria foi embaixador do Brasil na Alemanha Oriental entre 1978 e 1985. Como decano dos embaixadores credenciados em Berlim Oriental, ele conviveu de perto com o dirigente máximo do país, Erich Honecker, e foi alvo da vigilância cerrada de seu extraordinário aparato de espionagem – como descobriria com a abertura dos arquivos da Stasi, a polícia secreta da RDA, após a queda do regime.

Estudioso de pintura e grande colecionador de quadros, Calábria ia constantemente ao Museu de Dresden, onde contava com a ajuda de um funcionário em suas pesquisas sobre pintores alemães que passaram pelo Brasil, como Eduard Hildebrandt. O funcionário tinha notável capacidade de localizar pessoas – como parentes dos pintores – procuradas pelo embaixador, o que ele explicava dizendo que seu pai era pastor, e as igrejas espalhadas pelo país o ajudavam na busca. Em retribuição, o funcionário encomendava vestidos e sapatos para sua mulher e filha, alimentos inexistentes na RDA, coisas que ele via na TV da Alemanha Ocidental, e sabia que Calábria, como diplomata, podia trazer.

Após a queda do Muro, Calábria – que ainda vive em Berlim, aos 86 anos – foi chamado pelas autoridades alemãs para examinar a sua ficha nos arquivos recém-abertos da Stasi. Então descobriu que o funcionário era o seu principal espião. Na falta de coisas interessantes para dizer sobre o diplomata, o funcionário inventava. “Eles precisavam justificar o salário que recebiam”, interpreta Calábria. No seu último relatório, ele dizia que o embaixador estava espalhando que Honecker aproveitava as suas viagens de caça para ficar com a amante.

Calábria tinha um amigo, dono de uma oficina mecânica, com quem se encontrava frequentemente. Quando foi olhar sua ficha, descobriu que o amigo fazia relatórios dos encontros e entregava à Stasi as fotos que tirava de sua família. Em seus relatos, o amigo dava um tom de suspense e mistério a coisas triviais que Calábria havia feito, como comprar livros ou discos.

Um dia, o embaixador fazia sauna em um hotel de Berlim Ocidental, quando uma bela mulher abriu o roupão na sua frente e o convidou para subir até o quarto. O embaixador recusou. Um tempo depois, quando estava ao lado de Honecker numa parada militar, viu a mulher desfilando, de farda. “Eles eram muito desorganizados.”

Três vezes por ano, Honecker convidava Calábria para suas viagens de caça de veados e coelhos em várias regiões. O embaixador lhe havia contado que seu pai trabalhara na construção civil em Corumbá (MT). Honecker achava impossível que no sistema capitalista um filho de trabalhador se tornasse diplomata, e dizia aos colegas, rindo: “Ele diz que é filho de operário.” Nesses encontros, tratava o embaixador de “você”, o que lhe fez ganhar a confiança dos outros dirigentes do regime. Muitos, como o presidente do Parlamento, Horst Sindermann, vinham constantemente à sua casa, sem avisar, para comer bem e tomar um bom vinho francês.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*