Para alemães ocidentais, fim da barreira representou fardo econômico; orientais têm saudades do pleno emprego
BERLIM, Alemanha – Vinte anos atrás, a queda do Muro de Berlim despertou nos alemães – e, em grande medida, na humanidade – uma euforia e um otimismo sem precedentes. Se aquela barreira, por quatro décadas intransponível, podia abrir-se de forma tão fácil e inesperada, então nada mais parecia impossível. Com o passar do tempo, para muitos alemães, a barreira destruída passou a significar uma proteção perdida.
Do muro físico não restam vestígios. Na fúria de livrar-se dele, os alemães o arrancaram completamente. Foi preciso reconstruir um trecho de 1.300 metros, convertido em galeria a céu aberto, para relembrá-lo. Ao contrário do passado nazista, que os alemães – pelo menos os ocidentais – ocuparam-se em remoer para não repetir, o “Muro da Vergonha” eles fizeram tudo para esquecer. Mas ele insiste em continuar vivo, no que os alemães chamam “die Mauer im Kopf” (“o Muro na cabeça”).
A relação dos alemães em geral e dos berlinenses em particular com a queda do Muro – e com a reunificação que dela resultou – depende, naturalmente, de que lado eles estavam, de quando nasceram e do lugar que passaram a ocupar na nova Alemanha. Por razões óbvias, os berlinenses ocidentais, prisioneiros dos 165 km de muro e cerca que os rodeavam, são os maiores entusiastas de sua queda. Os alemães ocidentais normalmente queixam-se da maciça transferência de recursos – mais de € 1 trilhão – para o lado oriental, em investimentos na infraestrutura e na assistência social, com que eles arcam na forma de um “imposto solidário”, além do alto déficit público que esses gastos geraram.
Pesquisa divulgada em março pela revista Der Spiegel mostra que 57% dos alemães orientais defendem a antiga República Democrática Alemã (RDA). Dos entrevistados, 49% concordaram com a frase: “A RDA tinha mais lados bons que ruins. Havia alguns problemas, mas a vida era boa.” Outros 8% escolheram a opção: “A RDA tinha, na maior parte, coisas boas. A vida lá era mais feliz e melhor que na Alemanha reunificada de hoje.” Os alemães têm um nome para isso também: “Ostalgie”, ou nostalgia do Leste.
Segundo outra pesquisa, da Associação Social de Solidariedade Popular (criada na ex-RDA), 38% dos alemães orientais consideram-se vencedores da reunificação; 23%, perdedores; e 30% dizem que ela lhes trouxe perdas e ganhos.
Os jovens alemães orientais desempregados sonham com o “pleno emprego” desfrutado por seus pais. Os aposentados dividem-se entre os satisfeitos e os descontentes com o benefício que recebem. Muitas mães invejam a liberdade que suas mães tiveram de deixar os filhos na creche ou escola e trabalhar o dia inteiro. Por fim, há os de meia-idade que não se adaptaram ao mercado de trabalho e os que continuaram sendo úteis na nova economia.
Jörg Schäfer, de 50 anos, tinha 2 quando o Muro foi construído. Sua mulher, Jana, de 48, nasceu no ano de sua construção. “Só conhecíamos o país dividido. Crescemos com esse fato”, dizem, ambos formados em engenharia de transportes em Dresden. “Podíamos gostar ou odiar, não tínhamos como mudá-lo. Foi muito surpreendente quando ele caiu de forma tão fácil.”
Schäfer trabalhava numa estatal de logística para exportação. Sua área era a então União Soviética. Quando sua empresa foi absorvida pela equivalente estatal da Alemanha Ocidental, seus colegas encarregados de França e Itália foram demitidos. Ele ficou. Sua experiência era útil para os ocidentais. Seis anos depois, foi contratado por uma empresa privada.
‘CHORÕES’
Jana trabalhava na estatal de ferrovias, também absorvida pela equivalente ocidental. “No começo, foi difícil”, diz ela. “Sentíamos que nos olhavam de cima para baixo.” Os ocidentais veem os orientais como acomodados que esperam tudo do Estado – o que lhes valeu o apelido de “jammer Ossies”
(orientais “chorões”). Já o “besser Wessi” (ocidental “sabe-tudo”) é tido como arrogante e individualista. Os salários dos orientais eram 50% mais baixos que os dos ocidentais. Hoje, pelo menos nas estatais, equipararam-se. No mercado, continua havendo discrepâncias, até porque o Leste em geral é mais pobre e seu custo de vida, mais baixo.
O casal continua morando no mesmo apartamento alugado da prefeitura, em Mitte, que, com a queda do Muro, voltou a ser o centro de Berlim. O aluguel subiu de forma incalculável, mas os salários deles, também. Os € 850 que pagam hoje por mês representam 20% da renda familiar; na época da RDA, o aluguel era 15% da renda.
Os profissionais de áreas técnicas tiveram mais chances do que os das ciências humanas. O cientista político Nikolaus Werz, da Universidade de Rostock, na Alemanha Oriental, conta que, logo após a reunificação, dos 20 professores da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais, só 4 eram do Leste. Em muitas faculdades, não restou nenhum. Foram avaliados por bancas formadas por professores ocidentais e reprovados. “Até 1989 aqui não havia ciência política pluralista”, explica Werz. “Só marxismo-leninismo.”
Formada em ciência política na Universidade Livre de Berlim, Anja Weinhold, de 33 anos, está desempregada. Ela trabalhava num call center, mas foi demitida quando ficou grávida, em 2007. Seu contrato era por horas, e a empresa reduziu seu turno a zero, o que a lei permite. Anja recebe € 300 de seguro-desemprego, e o Estado paga seu aluguel. O marido, que faz pós-graduação, recebe uma bolsa de € 800. “Somos pobres. Na RDA, só não trabalhava quem não queria”, diz Anja.
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