Exilado na Bélgica e cada vez mais criticado em sua terra, o líder catalão levou sua região a uma separação forçada em que todos saíram perdendo
De líder independentista e futuro presidente do Estado da Catalunha a governante destituído, foragido da Justiça, aguardando extradição e sujeito a penas de até 30 anos de prisão. O destino de Carles Puigdemont, ex-presidente catalão, mudou drasticamente desde que o primeiro-ministro da Espanha, Mariano Rajoy, apoiado pelo Senado, acionou o artigo 155 da Constituição, que lhe permite intervir na região.
Rajoy nomeou sua vice, Soraya Sáenz de Santamaría, presidente interina da Catalunha. Seus ministros assumiram as secretarias regionais correspondentes a suas áreas. E foram convocadas eleições para o dia 21 de dezembro.
O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha aceitou o pedido de investigação contra Puigdemont por malversação de fundos, prevaricação e desobediência, por causa da realização do plebiscito do dia 1.º de outubro, declarado ilegal pelo Tribunal Constitucional (TC) da Espanha, e por ter depois proclamado a independência da Catalunha — ainda que com efeito retardado, na esperança de uma negociação com o governo espanhol que não veio.
O líder catalão, juntamente com seus 14 secretários de governo, também foi convocado a responder pelo crime de rebelião, que prevê até 30 anos de prisão. A audiência foi marcada para esta quinta-feira. Mas Puigdemont, exilado na Bélgica, já avisou que não vai comparecer.
Nesta quinta-feira, a Justiça espanhola decretou a prisão provisória de oito membros destituídos do governo catalão e emitiu uma ordem de prisão europeia contra Puigdemont. A resposta do líder catalão foi inflamada. Em um comunicado em vídeo, desde Bruxelas, ele “exigiu” a libertação imediata dos encarcerados e chamou os catalães a “combater” com “ataque” com serenidade, e sem violência.
Suas declarações sobem de tom na medida em que o cerco de Madri se fecha. Em entrevista coletiva na terça-feira, Puigdemont disse que só voltará à Espanha quando tiver a “garantia de tratamento e de julgamento justos”, e acusou o país de “politização da Justiça”. O pedido de prisão tende a envenenar ainda mais o ambiente entre ele e Rajoy. A Espanha, uma das democracias mais jovens da Europa Ocidental, é bastante suscetível a questionamentos em relação a seu Estado de Direito, ainda mais na sede da União Europeia (UE).
A escolha da Bélgica e de seu advogado de defesa, Paul Bekaert, indica que Puigdemont pode estar acuado, mas não está improvisando. Bekaert defendeu vários membros do grupo terrorista basco ETA (que renunciou à luta armada em 2011) e conseguiu evitar sua extradição à Espanha. Além disso, os juízes belgas são conhecidos por sua sensibilidade a casos de pessoas que alegam ser vítimas de violações dos direitos humanos.
O tema do separatismo divide o governo belga, uma delicada coalizão formada em outubro de 2014, depois dos cinco meses de impasse que se seguiram às eleições, que deixou o país sem governo.
O Partido Nova Aliança Flamenga (N-VA), que defende a separação de Flandres, do norte, de língua holandesa, participa da coalizão. Num gesto de apoio ao separatismo catalão, o ministro de Asilo, Migração e Simplificação Administrativa, Theo Francken, que pertence ao N-VA, foi quem concedeu o asilo a Puigdemont.
Já o primeiro-ministro Charles Michel, do Partido Reformista, representa os valões, de língua francesa. Ele é contra a separação, assim como o vice-primeiro-ministro Kris Peeters, que pertence ao Partido Cristão-Democrata e Flamengo.
“Não quero pré-julgar nada”, declarou Peeters, que também é ministro da Economia e do Emprego, sobre o exílio de Puigdemont. “Mas quando alguém declara independência, é melhor ficar perto de seu povo.”
De qualquer maneira, a decisão sobre a entrega ou não de Puigdemont à Espanha não será do governo, mas da Justiça belga. Pedidos de extradição passam pelo governo, mas no caso do Espaço Schengen, a área de livre circulação de pessoas que envolve 26 países europeus, é diferente. Há um mecanismo chamado Ordem Europeia de Detenção, ao qual a Espanha aderiu em novembro de 2014, pelo qual o pedido é feito de juiz para juiz.
Metade não basta
A situação de Puigdemont é, no mínimo, precária. Para o constitucionalista Diego López Garrido, patrono da Fundação Alternativas, de Madri, Rajoy venceu a disputa por causa de uma sequência de erros de cálculo de Puigdemont. “Ele pretendia impor a independência contra a metade da população, contra o Estado, contra os principais partidos, contra os empresários e contra a União Europeia, e isso é impossível”, analisa López, que foi deputado pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e secretário de Estado para a UE.
“Ele confundiu os desejos com a realidade”, prosseguiu López, cujo PSOE defende maior autonomia para a Catalunha, em contraste com o Partido Popular, no governo, que é mais inflexível e centralizador. “Uma coisa é ter apoio popular e outra é romper um Estado”, disse o constitucionalista a EXAME. “Não se pode edificar um país independente baseado em 50% a favor e 50% contra.”
No plebiscito do dia 1.º de outubro, 90% votaram a favor da independência, mas o comparecimento foi de apenas 43%. A imensa maioria dos catalães contrários à independência não compareceu. Esses dados, fornecidos pelo governo catalão, confirmam as pesquisas, que indicavam que apenas 40% era a favor da separação.
“A aplicação do artigo 155 foi um êxito para o governo”, avalia Juan Jesús González, professor de sociologia da Universidade Nacional de Educação a Distância, de Madri.
“Puigdemont não convocou as eleições porque preferia que o governo o fizesse, com a esperança de que a intervenção espanhola sobre o governo autônomo da Catalunha gerasse una escalada do conflito entre centro e periferia, mas não foi assim”, disse González a EXAME.
“Pelo contrário, a intervenção do governo central tem sido um alívio para as duas partes, na medida em que acabou com o beco sem saída em que havia se colocado o governo de Puigdemont, provocando fuga de empresas, falta de reconhecimento internacional e assim por diante”, observa o sociólogo.
Já a catalã Lourdes Casanova, professora da Universidade Cornell, no Estado de Nova York, acha que é cedo para dizer quem vai sair perdendo: “Vamos ver as eleições de dezembro. Em princípio, todos perderam”.
A professora lembra que, tradicionalmente, os separatistas radicais eram os bascos. “Dessa vez, o presidente do País Basco (Juan José Ibarretxe) pediu a Puigdemont que convocasse eleições, para evitar que o artigo 155 fosse acionado”, diz ela. O presidente catalão teria concordado, mas depois mudado de ideia. Suas posições são resultado de pressões no interior de seu governo.
A coalizão liderada por Puigdemont vai da extrema esquerda a liberais. A Candidatura da Unidade Popular (CUP) considera que ele não é suficientemente radical, e exigia a declaração imediata da independência, sem negociação. Já integrantes do seu Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT) queriam uma conduta mais moderada.
Casanova é especialista em mercados emergentes, e dá aulas de globalização em Cornell. Ela vê o conflito do ponto de vista da tensão entre local e global. “Há 30 anos as escolas da Catalunha ensinam em catalão, as pessoas cultivam os costumes catalães, a maioria não viaja, e vive numa bolha catalã, assistindo só a TV catalã, que por sinal é muito boa”, descreve a professora.
“O movimento independentista esperava mais apoio internacional, sobretudo da Europa, mas não teve, e foi muito desconcertante”, disse Casanova a EXAME. “Não há um projeto sólido sobre o dia seguinte à independência. Não estava claro o que aconteceria depois de nos tornarmos uma república, se se podia usar o euro. Falou-se em uma moeda eletrônica que a IBM estaria criando.”
Casanova lembra que ninguém estava preparado para o uso do artigo 155, que nunca tinha sido acionado antes. Assim como ninguém esperava que, da noite para o dia, 1.500 empresas anunciariam sua saída da Catalunha. Ela observa que as duas manifestações contra a separação, realizadas depois do plebiscito, tiveram a participação de líderes catalães “muito respeitados”.
“A maioria dos que não queriam a separação não votava nas eleições regionais”, diz a professora. Foi assim que os separatistas chegaram ao poder na Catalunha, depois das eleiçõe de 2015. “Todo mundo achava que nunca chegaria a independência. Agora, todo mundo vai votar.”
A divisão é visível até no grupo de WhatsApp da família Casanova. A professora conta que todas as manhãs vai ver quem saiu e quem voltou ao grupo, por causa das brigas em torno da independência. Uma parte da família apoia, outra rejeita. Alguns de seus sobrinhos foram à manifestação a favor da separação, e outros foram ao protesto pela continuação da Catalunha na Espanha.
Ela já propôs que não falassem disso no grupo, mas lhe responderam: “Como não falar de um assunto tão importante?”
Em dezembro, os catalães poderão falar nas urnas.
Publicado no app EXAME Hoje. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.