A intervenção do governo central eriçou os sentimentos de parte dos eleitores catalães. Outros reprovaram a radicalização dos separatistas. As pesquisas mostram o que se vê nas ruas: empate
BARCELONA — Ao convocar o plebiscito e depois declarar a independência da Catalunha, o presidente destituído Carles Puigdemont tinha um plano: provocar a repressão à votação e a intervenção do governo central espanhol, para eriçar os sentimentos nacionalistas dos catalães. Isso funcionou com alguns dos eleitores que vão às urnas nessa quinta-feira eleger um novo governo e Parlamento para a região; outros reprovaram a radicalização.
“Antes não tinha tão claro, mas agora, com tudo o que aconteceu, definitivamente quero a independência”, diz a médica oncologista Laura, de 27 anos, que como a maioria dos entrevistados prefere não publicar seu sobrenome. Ela vai votar na Candidatura da Unidade Popular (CUP), partido anarquista de extrema esquerda, que pressionou Puigdemont a seguir por esse caminho. “Penso que eles são uma peça-chave para o que nos espera agora, para enfrentar o que aconteceu”, explica a médica. “Nossa identidade foi muito atacada de fora.”
A CUP tem também um contingente de eleitores ideológicos, que optam por ela não para ter um Estado catalão, mas para enfraquecer o Estado espanhol e fortalecer o auto-governo local. É o caso de Francés, de 43 anos, trabalhador desempregado da construção civil.
“Para mim o mais importante é o direito das pessoas de decidir coletivamente de que forma lhes convém organizar-se em termos territoriais, econômicos, sociais e políticos”, afirma Francés, enquanto brinca com seu cachorro em um parque no centro de Barcelona.
“Com exceção dos independentistas da CUP, que defendem um sistema diferente do que já está estabelecido, os outros partidos mantêm a mesma configuração de Estado, embora menor”, critica ele. “Não é uma ruptura do Estado moderno, conquistado de pequenos reinos a sangue e fogo. Assim como na época feudal se rompeu o Império Romano, o império dos Estados também terá seu fim”, filosofa Francés, que também trabalha como “educador social”. “Se eu votar, votarei na CUP”, diz ele. “Nunca confiei no sistema democrático representativo. Só votei duas vezes, as duas pela CUP.”
Paula, uma estudante de desenho gráfico de 20 anos, não gosta do clima de tensão e radicalização, e acha que Puidgemont conduziu mal o “Procés”, como é chamada a campanha pela independência, porque atropelou a maioria dos catalães, que não a desejavam dessa forma. Mesmo assim, vai votar no partido Juntos pela Catalunha, do presidente destituído e exilado em Bruxelas.
“Não se pode reprimir os direitos fundamentais da democracia”, justifica ela, referindo-se à repressão e intervenção do governo espanhol. “Há coisas que os dois lados não estão fazendo bem. Não podem prender as pessoas só porque querem”, continuou, referindo-se à detenção de Oriol Junqueras, vice-presidente destituído e candidato a presidente pela Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), assim como outros sete secretários do governo dissolvido.
O próprio Puigdemont e quatro outros conselheiros fugiram para Bruxelas para escapar da prisão. Os envolvidos no plebiscito de 1.º de outubro e na declaração de independência, considerados inconstitucionais, estão sujeitos a até 30 anos de cadeia, pelo crime de rebelião.
“É preciso que haja julgamentos bem feitos”, diz Paula, que esperava uma loja no centro de Barcelona abrir, depois da sesta, para se apresentar para uma entrevista de emprego. “Não se pode tomar decisões precipitadas porque há muita gente que não está de acordo”, acrescentou, numa crítica à Generalitat, como é chamado o governo regional catalão. “Sem uma maioria não se pode proclamar independência, porque prejudica os dois lados.”
Ela desmente no entanto que entre familiares e amigos tenham rompido vínculos entre os que estão a favor e contra o Procés. “Meu namorado e eu não temos a mesma ideologia mas não brigamos por isso.” Ele é contra a independência. Ela quer mais autonomia. “As coisas precisam se acalmar”, diz a jovem. “Está tudo muito tenso.”
Paula reconhece que, dos sete partidos com representação no Parlamento e mais chances de formar governo, o que mais busca apaziguar os ânimos é o Podemos, movimento nacional de centro-esquerda, formado em 2014 como alternativa aos partidos tradicionais, e que na Catalunha é conhecido como “os Comuns”. Mas Paula não votará neles.
Outro que buscou um acordo foi o Partido Socialista. Mas a estudante não gosta do fato de eles terem apoiado a aplicação, por parte do governo de Mariano Rajoy, do Partido Popular, de direita, do Artigo 155 da Constituição, que prevê a intervenção do governo central, em caso de ameaça à soberania.
“Os socialistas se venderam, porque aprovaram o 155, quando nunca em nada tinham estado de acordo com a direita, e agora de repente nisso estão de acordo”, diz ela. “Não sou favorável a uma ruptura, mas acho que o governo (central) não está tomando as decisões corretas em relação à Catalunha. A região dá muitos benefícios à Espanha.”
Um dos argumentos mais citados pelos favoráveis à maior autonomia ou mesmo à independência é o de que a Catalunha representa 20% do PIB da Espanha e 16% da população, arrecada 23% dos impostos do país e recebe apenas 9% em receitas. De acordo com a coalizão que estava no governo regional — Juntos pela Catalunha, ERC e CUP —, “a Espanha rouba 16,5 bilhões de euros” por ano da Catalunha, o que Madri contesta.
“Teríamos que encontrar uma maneira de não nos separarmos, mas que tivéssemos uma autonomia só no plano econômico”, continua Paula. “Não sou radical. Acho que deveriam entrar em acordo porque a situação está muito ruim.”
Ela define, no entanto: “É uma questão de sentimento. Sou muito catalã. Acho que fizeram as coisas mal, porque não há uma maioria em favor da independência. Mas se tenho que me posicionar, antes de tudo sou catalã. Sou espanhola, e não quero deixar de ser. Falo castelhano e catalão igualmente. Não faço distinção. Mas não se pode tirar toda a autonomia assim.”
O economista Vladimir Ripoll também é eleitor do Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT), que era como se chamava o partido de Puidgemont, rebatizado de Juntos pela Catalunha para essas eleições, depois de sofrer escândalos de corrupção. Aos 79 anos, Ripoll já era eleitor da Convergência, tradicional partido catalão pró-autonomia, que se fundiu ao PDeCAT também depois de escândalos de corrupção.
“Não sei em quem vou votar”, confessa o economista. “Não acredito na independência. Defendo uma federação como a Suíça, em que tenhamos uma convivência comum, respeitando os princípios de cada um dos povos que vivem na Espanha. Um Estado que tenha sua autonomia.”
Ripoll considera que a autonomia alcançada pelo chamado Estatuto, aprovado em 2006, que assegurava o ensino em catalão e maior controle sobre as receitas dos impostos, não era suficiente. O Estatuto foi restringido em 2010 pelo Tribunal Constitucional, em uma ação apresentada pelo PP. A legitimidade da decisão foi contestada porque havia juízes que tinham passado da idade de se aposentar, e nomeações por fazer na corte.
“Puigdemont fez uma coisa carregada de ilusão, mas sem base, sem fundamento, talvez contando com apoios internos e externos que lhe negaram, seja quem tenha sido”, analisa o economista. “E chegou à situação atual.”
Do outro lado do espectro, o eletricista Fernando Ceballos, de 45 anos, dispara contra os integrantes do governo destituído: “Nazistas da ditadura da esquerda, corruptos, toda essa gente são uns mentirosos, enganam as pessoas, gastam o dinheiro, o típico de gente assim”, resume Ceballos, que nasceu na Catalunha, de família originária da Andaluzia. “São um problema para a economia, a saída das empresas, falta de investimentos, tudo isso causou essa gente”, acrescenta o eletricista, referindo-se à transferência da sede de 3.000 empresas da Catalunha para outras partes da Espanha, por causa da declaração de independência.
Ele não tinha certeza se ia votar no Cidadãos, movimento de centro-direita anti-separatista surgido em 2006 na Catalunha, que se tornou nacional, também como alternativa aos partidos tradicionais, ou no PP, do primeiro-ministro Rajoy. Em eleições anteriores, alternou-se entre os dois.
“Acho ruim o que aconteceu e estou decepcionado com a maioria dos partidos”, afirma Félix Muñoz, de 40 anos, que dá aula de economia em uma universidade americana, mas veio votar. “Os que estão no poder (na Catalunha) se radicalizaram muito mais do que há dez anos, e os partidos políticos de Madri também se radicalizaram e mandaram a polícia, fizeram coisas que há um ano nunca teríamos previsto. “
Para o professor, “as duas partes não estiveram à altura das circunstâncias”. Ele elogia o Partido Socialista, por ter tentado atuar como mediador. Os socialistas propuseram que Puigdemont convocasse eleições, mas o então presidente catalão preferiu que elas fossem convocadas pelo governo interventor espanhol, e se realizassem num clima de maior ressentimento em relação a Madri.
Entretanto, Muñoz reconhece que o PS “tem pouco apoio, e é muito pouco provável que possa chegar a governar”. Segundo a última sondagem, do instituto Metroscopia, publicada no dia 15 pelo jornal El País, em primeiro lugar está Cidadãos, com 25,2% das intenções de voto, seguido pela ERC, separatista de esquerda, com 23,1%. O PS e o Juntos pela Catalunha vêm em terceiro, ambos com 14,3%. Podemos, com uma posição não muito clara sobre a independência, tem 9,3%, e a CUP e o PP, os dois extremos da esquerda e da direita, vêm por último, com 6,4% e 5,4%, respectivamente.
Na soma dos grupos, os separatistas estão com 43,8% e os “constitucionalistas”, com 44,9%. “Os principais partidos seguem tendo muita gente que vota neles, mas foram aos extremos”, observa Muñoz. “Talvez dentro de dois meses tenhamos que votar outra vez.” Esse é um cenário bastante plausível, seja pela dificuldade de formar coalizão numa eleição tão disputada, seja porque um governo separatista será apeado de novo do poder se tentar cumprir sua promessa. A democracia tem dessas coisas.
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