Uma das maiores economias e um dos países mais avançados do mundo, a França enfrenta perrengues dignos de uma Venezuela. Mais uma vez, como acontece ciclicamente — embora desta vez eles tenham caprichado um pouco mais —, os sindicatos filiados à Confederação Geral do Trabalho Unitário (CGT), ligada ao Partido Comunista, mostram quem é que manda no país. As paralisações trouxeram o caos para a matriz inteira do sistema de transportes, tanto terrestre quanto aéreo, e levaram o abastecimento de combustíveis ao colapso, forçando os franceses a optar: ou esperam em longas filas ou voltam para casa. O timing não poderia ser mais destrutivo. A França é sede este ano da Eurocopa, a partir do dia 10 de junho, e os franceses se preparam para as férias de verão, que começam dia 5 de julho.
O motivo para a queda de braço desta vez — aos sindicatos franceses não tem faltado criatividade, ao longo de décadas, para encontrar pretextos para flexionar seus músculos perante governos de todas as matizes ideológicas — é a chamada Lei Khomri. Batizada com o nome da ministra do Trabalho, Myriam El Khomri — que não é poupada nem por ser marroquina, mulher ou socialista, credenciais que de nada valem quando alguém ousa enfrentar os tabus do onipotente sindicalismo francês —, a lei flexibiliza o mercado de trabalho. Entre outras coisas, as novas regras, que tiveram de ser impostas por decreto do presidente François Hollande, diante das barreiras erguidas contra ela no Parlamento, tornam mais fácil para empresas em dificuldades dispensarem seus funcionários, relativizam a jornada semanal de 35 horas e ainda por cima — pecado dos pecados — enfraquecem os sindicatos, possibilitando acordos entre patrões e empregados que passam por cima dos dissídios coletivos das categorias.
“A lei procura introduzir algumas medidas que atacam vacas sagradas simbólicas e reais da esquerda, como uma dramática expansão do que constitui uma semana normal de trabalho de 46 horas, mas com generosas horas extras a partir da 36.ª hora, um teto para a indenização por demissão sem justa causa e uma redelimitação dos direitos dos sindicatos em caso de não haver acordos, incluindo o recurso às greves”, enumera o economista belga Robert Hancké, da London School of Economics. “Em resumo, a lei trabalhista francesa vai ficar muito parecida com a da Alemanha, exatamente o país onde todo mundo gostaria de morar.”
O problema é o de sempre, quando se trata de sindicatos e direitos “adquiridos” — que o diga o presidente interino Michel Temer sobre seu bem-intencionado plano de vôo, que corre o risco de ser abatido no solo, antes mesmo de taxear a pista. Aqueles que estão empregados, que sonham com suas aposentadorias, tudo bonitinho, não querem saber se os que estão na chuva permanecerão de fora por causa das barreiras impostas pelos seus direitos adquiridos, ou se o sistema previdenciário está em vias de desmoronar pela relação insustentável entre contribuições e benefícios. E o mais sensacional é que esse egoísmo vem revestido de um discurso “progressista”, de “sensibilidade social”, ou seja, de altruísmo. É uma imagem que ignora os próprios indicadores sociais. Basta ver que o desemprego francês, por exemplo, é mais alto entre as minorias e os jovens. Ou seja, os “direitos adquiridos” são para os setores mais privilegiados da sociedade. Um em cada quatro franceses com menos de 25 anos está desempregado. A falta de perspectiva nas “banlieues”, a periferia das grandes cidades francesas onde se concentram descendentes de imigrantes do Norte da África, facilita o trabalho dos recrutadores do Estado Islâmico.
A França é o melhor exemplo dos efeitos desse modelo corporativista. Com seu extraordinário sistema público de educação e de saúde, sua capacidade de inovação comprovada em tantos segmentos, sua criatividade e impecável gosto para a moda, o design, a gastronomia, seus destinos turísticos de primeiríssima classe, enfim, com todos os atributos essenciais para a geração de riquezas no mundo contemporâneo, a economia francesa vem tropeçando, quando comparada à de países com nível de desenvolvimento equivalente. Desde a crise financeira mundial de 2008, o PIB da França cresceu míseros 3%, enquanto o da Alemanha aumentou 6%, o da Grã-Bretanha, 8% e o dos Estados Unidos, 10%, calcula Roger Bootle, presidente da consultoria Capital Economics. E a diferença que salta aos olhos, nesse grupo de elite, é exatamente a legislação trabalhista. Estados Unidos, Alemanha e Grã-Bretanha têm sistemas flexíveis de contratação que facilitam os acordos entre patrões e empregados e reduzem os custos das demissões. Por isso, os empresários desses países relutam muito menos em contratar. Essa realidade se reflete nos índices de desemprego. O da França é o dobro desses outros três países (ver gráfico).
Seria possível argumentar que o crescimento do PIB explica a disparidade nos índices de desemprego. Mas, considerando o conjunto dessas economias, nessa relação entre ovo e galinha, tudo indica que uma das principais causas para a falta de dinamismo da França é a rigidez do ambiente trabalhista, aponta Bootle, autor do livro The Trouble with Europe. “Essa fragilidade do mercado de trabalho afeta a economia inteira: empresários hesitam em começar novos negócios, os investimentos tanto internos quanto estrangeiros são desestimulados e o consumo é prejudicado pelo baixo nível de emprego.”
O último trimestre até teve um bom resultado, com crescimento de 0,6% do PIB sobre o trimestre anterior, ante uma previsão de 0,5%. O índice foi puxado por aumento de 1% no consumo e de 2,4% nos investimentos privados. O incremento da atividade causou ligeira queda no desemprego em março e em abril, depois de aumento recorde de 1,1 ponto percentual em fevereiro. Mas, observa Bootle, trata-se de uma reação ao baixo crescimento dos últimos anos e, pontualmente, à desaceleração causada pelos atentados de novembro em Paris.
A França está estacionada em um estágio anterior ao das reformas de Margaret Thatcher, nos anos 80, e de Gerhard Schröder, no início deste século. Ambos foram crucificados pelos sindicatos, que os viram como usurpadores de direitos e até da identidade nacional. Entretanto, Thatcher e Schröder foram capazes de aguentar firme, tanto por sua capacidade de liderança quanto por um certo consenso no restante das sociedades britânica e alemã, respectivamente, de que era preciso fazer alguma coisa para sair da paralisia. Uma certa fé cega e uma autoconfiança teimosa precisam entrar em ação em favor de reformas que tiram uma fatia influente da população de um país de sua zona de conforto.
A França não chegou a esse ponto. Apesar da sua condição de “presidente em guerra” contra o terrorismo, o que costuma aglutinar a população em torno de um governante, a popularidade de Hollande caiu 4 pontos percentuais de fevereiro para março e atingiu um recorde negativo: 17%, de acordo com o instituto Elabe. A popularidade do primeiro-ministro Manuel Valls também caiu 4 pontos em março, para 23%. Bootle sintetiza o estado mental do francês médio: “Não aprovamos o presidente porque ele fracassou miseravelmente em melhorar o desempenho econômico; mas rejeitamos totalmente quaisquer medidas que ele tente introduzir para melhorá-la”.
Já Hancké critica a forma como o governo conduziu o processo. “Como sempre, a lei foi introduzida sem muito debate com os sindicatos que representam os afetados”, observa o economista. “O governo até deixou claro que poderia colocar a lei em vigor sem votação no Parlamento, como se estivesse em um estado de emergência. O resultado, como é habitual nesses casos na França, é que, agora que a lei está tramitando, o resto do país se engaja numa mobilização social. Em vez de investir tempo em incluir as bases políticas na discussão e só depois aprovar uma versão com emendas que tivesse apoio mais amplo, o governo redigiu a proposta e enviou para a Assembleia Nacional. Isso pode até apressar a tomada de decisão, mas acaba retardando ou mesmo inviabilizando a implementação.”
Ironicamente, o cargo completo de Myriam El Khomri é ministra do Trabalho, do Emprego, da Formação Profissional e do Diálogo Social. Mas Deus sabe como é difícil esse tal diálogo social. Pergunte ao Temer.
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