Se as pesquisas estiverem certas, maioria vai trocar proteção das corporações por uma ‘terra de oportunidades’
PARIS – Os 44,5 milhões de eleitores franceses escolhem hoje entre sua velha conhecida, a França dos ‘direitos adquiridos’ protegidos pelos sindicatos e corporações, e uma terra prometida de oportunidades e de competição, em que vence o melhor, ou o que trabalha mais. Naquilo que mais importa para os franceses, é isso o que separa, respectivamente, a candidata socialista Ségolène Royal e seu adversário de direita, Nicolas Sarkozy, o favorito, segundo todas as pesquisas de opinião.
No centro dessa disputa, que polariza o país ideologicamente e divide seus eleitores praticamente pela metade (a maior vantagem conferida a Sarkozy nas pesquisas é de 54,5% a 45,5%), estão o desemprego, a previdência e a imigração. Se esses temas separam os dois candidatos entre linhas de pensamento claras, outros três turvam as fronteiras ideológicas: o combate à criminalidade, o impulso ao empreendedorismo e a recuperação da competitividade.
Sarkozy considera a jornada semanal de 35 horas, instituída pelos socialistas em 2000, uma ‘catástrofe’, principal responsável pela taxa de desemprego de 8% (que, diga-se, já foi bem mais alta) e pelo crescimento medíocre (média de 1,5% nos últimos 5 anos). Ele quer permitir uma jornada de até 39 horas, com essas 4 adicionais isentas de impostos, o que traria acréscimo líquido de salário de 25%.
‘Deixem quem quer trabalhar mais ganhar mais’, é um de seus bordões. Para ele, o aumento decorrente no poder aquisitivo impulsionaria o crescimento econômico. Ségolène afirma que a jornada de 35 horas gerou 1 milhão de empregos (foram 350 mil, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos). Ela reconhece que a lei é ‘muito rígida’, mas, fiel às suas bases, diz que o assunto deve ser ‘negociado pelos parceiros sociais’.
Sarkozy chama de ‘indecentes’ regimes especiais da previdência, que permitem a alguns trabalhadores, como a corporação dos eletricitários, aposentar-se com 37 anos e meio de contribuição, quando os restantes têm de cumprir 40 anos. Ségolène não vê problemas nisso, mas prometeu aumentar em 5% as aposentadorias mais baixas, financiando o gasto com uma taxa sobre as operações na Bolsa, cuja porcentagem também seria ‘negociada pelos parceiros sociais’.
Torna-se tentador comparar Sarkozy com Margaret Thatcher, a dama de ferro que enfrentou os sindicatos, privatizou as estatais e abriu a economia britânica. Não é o caso. ‘A França não é a Grã-Bretanha dos anos 70’, disse ao Estado Dominique Moisi, do Instituto Francês de Relações Internacionais. ‘Não precisa dessa radicalidade. Com Sarkozy, haverá privatização e descentralização, e será bastante espetacular. Mas de um modo suave e cauteloso. É uma revolução contra-revolucionária.’
Moisi resume assim o conceito sarkozista: ‘Um Estado que está mais sobre a cabeça de seus cidadãos no que diz respeito à segurança e que está menos nas suas costas em termos econômicos.’
A polarização ideológica não é novidade. ‘É assim na França há 200 anos’, lembra o cientista político e historiador Luiz Felipe Alencastro, professor na Sorbonne. A última eleição, de 2002, em que a direita de Jacques Chirac se enfrentou com a extrema direita de Jean Marie Le Pen no segundo turno, é que foi um ‘acidente’, mas ali, nos 82% de votos obtidos por Chirac, estava embutida metade dos votos úteis da esquerda, polarizando, afinal, com seu outro extremo.
E não é toda a história. ‘Há polarização, mas há também porosidade’, observa Henri Rey, diretor de Pesquisas da Faculdade de Ciências Políticas (Science Po). Ségolène é enfática com relação a impulsionar o empreendedorismo e a inovação, e dar crédito às pequenas e médias empresas. E soa mais enérgica quanto à repressão da criminalidade do que o ex-ministro do Interior. ‘Não são atitudes clássicas da esquerda’, comenta Rey.
‘Sarkozy e Ségolène entendem que é preciso aumentar a produtividade dos trabalhadores, a competitividade dos produtos franceses e o crédito para inovação, sobretudo nas pequenas e médias empresas’, atesta Philippe Aghion, da Escola de Economia de Paris. ‘A questão é como.’
‘É uma bipolarização imperfeita, porque os 18% de votos em favor de François Bayrou (o terceiro colocado no primeiro turno, dia 22) traduzem a vontade de ter outra coisa que não os aparelhos partidários clássicos’, descreve Brice Tenturier, diretor de Política e Opinião do instituto TNS Sofres. ‘O eleitorado de Bayrou é verdadeiramente de centro.’ Seus 6,8 milhões de votos se distribuem, segundo as pesquisas, quase equitativamente entre um terço para Sarkozy (por adesão a suas idéias), um terço para Ségolène (em grande parte por rejeição a Sarkozy) e um terço de abstenção.
Em contrapartida, Sarkozy, com sua atitude antiimigração, roubou 1 milhão dos eleitores de Le Pen de 2002, e é o destinatário agora de dois terços dos votos que ele obteve no primeiro turno (10%, em quarto lugar).
Num sentido muito diferente de 2002, esta é também uma eleição entre a direita e a direita – a dos gaullistas e a dos socialistas. O que também não significa que Ségolène seja um Tony Blair, o reformador do Partido Trabalhista britânico. Simplesmente porque ela não lidera seu partido. Ao contrário, empurrou sua candidatura goela abaixo dos chamados ‘elefantes’ do PS, assim como Sarkozy não era o nome de Chirac.
Depois da provável derrota de hoje – a terceira consecutiva, desde 1995 -, o Partido Socialista deve passar por uma ‘refundação’, segundo o seu primeiro-secretário, François Hollande, companheiro de Ségolène, mas bem à sua esquerda. Tudo indica que a França também. Mas à francesa.
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