PARIS, França – O presidente eleito Emmanuel Macron só assume neste domingo, mas a fatura já está chegando. Em carta aberta, Laurent Berger, secretário-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), a maior do país, que o apoiou no segundo turno, pediu que Macron reconsidere seu programa de reforma trabalhista. A carta reflete o clima de tensão e a resistência que desperta a reforma, considerada vital por muitos analistas para a dinamização da economia francesa, e catastrófica para os que se apegam a certos direitos adquiridos.
“O senhor foi eleito por mais de 20 milhões de franceses. Sua eleição representa a vitória da República sobre o ódio”, afirma Berger, em alusão à candidata ultra-nacionalista Marine Le Pen, da Frente Nacional (FN), derrotada por 66% a 34%. “Fiel a seus valores, a CFDT assumiu sua parte no combate para conter a extrema direita. Há momentos da história que não suportam a ambiguidade: nosso apelo a votar no senhor no segundo turno foi claro. As condições peculiares de sua eleição o obrigam a levar em conta quem o apoiou, mas também que votou no senhor não por adesão a seu programa, mas por rejeição à FN.”
A tradicional Confederação Geral do Trabalho (CGT) recomendou não votar em Le Pen mas não apoiou Macron — a mesma posição do candidato apoiado pelos comunistas, a ela vinculados, Jean-Luc Mélenchon, que ficou em quarto lugar no segundo turno, com 19%. A CFDT pagou um preço por sua coragem de apoiar um candidato que representa um projeto “liberal”: no domingo mesmo em que anunciou sua posição, dia 23, quando saíram os resultados do primeiro turno, sua sede em Paris teve vidros estilhaçados e pixação. Esse, claro, é o preço visível. O preço político de apoiar um candidato reformista, assim como o ganho de ajudar a conter uma extremista, ainda serão calculados.
Para este período de transição entre a posse, neste domingo, e a formação do novo governo depois das eleições para a Assembleia Nacional, em dois turnos, dias 11 e 18 de junho, Macron promete apenas uma reforma. Trata-se do ele chama de “moralização da vida pública”, composta de duas medidas: a proibição do nepotismo e novas regras para o financiamento de campanha.
Há um consenso na França sobre sua necessidade, depois do escândalo que se abateu sobre o candidato da centro-direita, François Fillon, que deixou de ser favorito quando se revelou que seu gabinete no Senado havia pagado irregularmente cerca de 900 mil euros em salários a sua mulher e um casal de filhos. Bem-vindo à escala dos escândalos europeus: aqui eles se medem em milhares, não em milhões, como no Brasil. O ex-primeiro-ministro amargou um terceiro lugar no primeiro turno, com 20% (Macron venceu com 24% e Le Pen teve 21%).
Passadas as eleições legislativas, Macron se lançará para “a mãe de todas as reformas”: a trabalhista. No Brasil, o maior embate é o da Previdência, mas na França essa já foi feita: a idade mínima é de 62 anos. Le Pen falava em voltar para 60, mas nem com isso venceu.
A França já passou, nos últimos dois anos, por duas reformas trabalhistas. A primeira foi proposta pelo próprio Macron, em 2015, quando era ministro da Economia. Ela ampliou e regulamentou as seguintes práticas: trabalho aos domingos; escalas noturnas; procedimentos de conciliação fora dos tribunais; capacitação e regulação dos representantes dos trabalhadores e empregadores que participam dos julgamentos das disputas trabalhistas; bancos de horas; acordos de redução de jornada e de salários e demissões coletivas e individuais por empresas em dificuldades financeiras; vagas para pessoas com deficiência; alívio das penas para empresários condenados, de prisão para multas.
Não foi um passeio. No período da discussão da chamada Lei Macron, o então ministro foi hostilizado por manifestantes e por deputados da Assembleia Nacional. E não fugiu ao corpo-a-corpo, nem com uns nem com os outros. Para desespero de sua escolta, bateu boca com sindicalistas na rua. No Parlamento, enfrentou gritos e deboche, em geral sem perder a fleugma.
Durante um debate, em fevereiro de 2015, olhando nos olhos dos deputados que resistiam às mudanças, Macron criticou “esses que preferem dizer que tudo vai bem, que não é preciso fazer nada, diante de um desemprego de 10%, e de 25% para os jovens, e ainda consideram isso uma posição de esquerda, quando na verdade é uma desconexão da realidade”. Macron, que vinha do mercado financeiro e nunca disputara um cargo eletivo, teve ali seu batismo de fogo.
No ano passado, quando Macron já estava em campanha como candidato de seu novo Movimento, Em Marcha (agora rebatizado de República em Marcha), o governo socialista fez uma segunda reforma, proposta pela ministra do Trabalho, Myriam El Khomri. A Lei Khomri facilita as demissões, reduzindo as indenizações para os assalariados dispensados, e diminui os encargos sobre as horas extras.
Ainda assim, o desemprego continua alto, em 9,7%. Antes da crise de 2008, o índice era de 7%. A crise provocou um encolhimento de 3% do PIB francês. O número de desempregados saltou de 3 milhões para 5,1 milhões. A partir de 2010, a economia começou a crescer, ainda que fracamente. O desemprego também está caindo, discretamente, ajudado não só pela tímida retomada da atividade econômica, mas também pela queda da produtividade e da fertilidade: mais pessoas estão se aposentando e menos entrando no mercado de trabalho, observa o economista Yannick L’Horty, professor da Universidade Paris-Est Marne-la-Vallée e pesquisador do centro de estudos Trabalho, Emprego e Políticas Públicas (TEPP).
“A situação é muito preocupante, porque a França não fez as reformas que a Itália, a Espanha, a Alemanha e sobretudo a Inglaterra fizeram”, constatou L’Horty, em entrevista a EXAME Hoje. Segundo o especialista, a principal mudança a ser adotada é a redução dos encargos trabalhistas. Para cada 100 euros de salário bruto, o trabalhador recebe 80, e o empregador gasta 140. Esses 60 euros que não vão para o bolso do assalariado representam impostos e contribuições sociais.
Atualmente, graças a um programa de desoneração, que tem o custo de 20 bilhões de euros ao ano, há um subsídio de 28 euros para cada 100 euros de salário. Outros 6 euros são pagos pelo governo, de um fundo de competitividade. Macron promete elevar o orçamento da desoneração para 22 bilhões de euros, e aplicar outros 10 bilhões na competitividade.
No governo anterior, do ex-presidente Nicolas Sarkozy (2007-2012), de direita, foi feita uma desoneração sobre as horas-extra. Como a jornada de trabalho na França é de apenas 35 horas semanais, muitos empresários são obrigados a pagar hora-extra, até o limite de 48 horas semanais, fixado pela União Europeia.
François Hollande, o presidente socialista que sucedeu Sarkozy, e que entrega o cargo neste domingo a Macron, cancelou essa desoneração. Eglantine Malbec, dona de uma loja de bijuteria em Paris, conta que, por causa dessa medida, o encargo sobre as horas extras em seu pequeno negócio saltou de 250 para 380 euros por mês. “Foi enorme a diferença para mim”, afirma Malbec, de 46 anos, que além da loja diz que tem que se virar fazendo bicos. “Como não tenho filhos, pago muito imposto.”
De acordo com L’Horty, a nova reforma de Macron deve se sustentar em quatro pilares: a diminuição dos encargos trabalhistas e o seu foco nos salários mais baixos, já que hoje a desoneração está distribuída entre todas as faixas salariais; igualmente, a reorientação do programa de capacitação profissional, orçado em 35 bilhões de euros ao ano, para que beneficie mais aos que têm salários mais baixos; estender o seguro-desemprego para os mais jovens, diminuindo o número mínimo de meses de trabalho para ter acesso ao benefício; reduzir o custo da demissão.
Naturalmente, essa última medida é a que gera mais resistência das centrais sindicais. É como se o custo da demissão representasse uma garantia de emprego. É o raciocínio, claro, de quem está empregado — e sustenta os sindicatos. Mas ignora quem está desempregado, ou em um emprego precário, de contrato por tempo determinado, em parte porque o empresário tem medo de arcar com um compromisso maior. De acordo com um exemplo dado no site do Ministério do Trabalho francês, se alguém trabalha por 12 anos e 9 meses, recebendo o salário mínimo bruto de 1.500 euros (dos quais recebe, líquidos, 1.200), quando é demitido, tem direito a uma indenização de 4.375 euros — ou quase três salários brutos.
A alternativa, para o empregador, são os contratos por tempo determinado. Mas mesmo nesses casos ele acaba assumindo um compromisso. E, pela lei, só pode haver dois contratos por tempo determinado consecutivos.
“Há uma rigidez no sistema, seja pelo compromisso que o empregador assume nos contratos por tempo determinado, seja pelo custo da demissão no indeterminado”, constata L’Horty. Essa rigidez inibe a abertura de vagas. A ideia de Macron é compensar a maior facilidade de demitir com dois colchões para o trabalhador: um seguro-desemprego mais generoso e mais acesso à capacitação profissional, para ampliar suas chances de encontrar uma vaga. “É o custo social da flexibilidade”, aponta o especialista. “A retomada da atividade econômica é um bom momento para fazer isso.”
Falta combinar com os russos, como diria Garrincha — no caso, as centrais sindicais. Tanto as que apoiaram Macron quanto as que não o apoiaram vão resistir.
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