PARIS, França – Farah Hussein é o pesadelo de Emmanuel Macron, e talvez de todo político. A moça de 21 anos, estagiária em uma startup que criou uma plataforma de recrutamento, pensa muito antes de votar, e é avessa a alinhamentos. Não votou no primeiro turno da eleição presidencial francesa, dia 23, e estava em dúvida na sexta-feira se apoiava o candidato de centro neste domingo ou se simplesmente não votava: a ultra-nacionalista Marine Le Pen, que quer ver os imigrantes pelas costas, jamais, para essa filha de pai argelino e mãe francesa.
Hussein, que tem mestrado em desenvolvimento comercial, votou nas eleições municipais de 2014 nos comunistas, que já administravam Paris de um jeito que ela gosta. Nas eleições para os deputados da Assembleia Nacional, no mês que vem, escolheu os Republicanos, de centro-direita: “Na condução da economia, sou um pouco mais realista. As ideias dos comunistas não são aplicáveis em escala maior. A UDI (União dos Democratas e Independentes) é direita demais e ao Em Marcha!, do Macron, falta credibilidade”.
Para o Parlamento Europeu, Hussein prefere o Partido Verde: “São os deputados europeus que tomam todas as decisões sobre as diretrizes europeias que afetam o meio ambiente”.
Nem sequer sobre imigração ela tem uma visão simplista: “É difícil se colocar no lugar de alguém que governa um país. Não sou tão à direita a ponto de não aceitar a imigração, nem à esquerda para escancarar as portas. Estou de acordo com acolher e ajudar os imigrantes que precisam, mas é preciso que isso seja regulado. O trabalho que precisa ser feito não é aqui, mas nos países dos imigrantes. Mas não sou lepenista, não é possível fechar as fronteiras hoje em dia. O mundo está globalizado demais para isso”.
Bem-vindo ao mundo da sofisticada democracia francesa.
As pesquisas dão entre 60% e 62% a Macron, ante 38% a 40% a Le Pen. Já é uma marca histórica para o seu partido Frente Nacional (FN), cujo auge, antes disso, tinha sido a eleição presidencial de 2002, quando o pai de Marine e fundador do partido, Jean-Marie Le Pen, foi derrotado no segundo turno por Jacques Chirac com 18% dos votos. A FN não tem sequer assento na Assembleia Nacional. Apenas administra dez cidades.
O grande desafio de Macron, que encabeçou o primeiro turno, com 24% dos votos, é convencer a esquerda, órfã nesse domingo, a sair para votar. O candidato dos comunistas, Jean-Luc Mélenchon, que ficou em quarto, com 19%, não facilitou as coisas para Macron. Ele recomendou não votar em Le Pen. Mas não recomendou apoiar Macron. Seu objetivo é claro: manter uma imagem “limpa” de candidato da esquerda para formar uma grande bancada na Assembleia Nacional, e assim postular a vaga de primeiro-ministro, numa coabitação com o provável vencedor, Macron.
Para isso conta concentrar o voto da esquerda, que disputou dividida o primeiro turno: Benoît Hamon, o candidato do impopular governo do presidente socialista François Hollande, chegou em quinto, com 6%.
A ambiguidade de Mélenchon frente ao segundo turno deixou ainda mais confuso o eleitor de esquerda, dividido entre votar no programa liberal de Macron, que ele rejeita, para com seu voto útil bloquear a passagem de Le Pen, ou abster-se, anular ou votar em branco. O debate de quarta-feira, no qual a agressividade gratuita de Le Pen a prejudicou, incentivou muitos esquerdistas a sair do armário.
Entre os eleitores de Mélenchon, 54% passaram a afirmar que votarão em Macron, ante 44% no dia 2, segundo sondagens do instituto Elabe. Entre as duas enquetes, a fatia de eleitores dele que votariam em Le Pen caiu de 23% para 9%.
Parece estranho eleitores comunistas votarem numa candidata chamada de ultra-direitista, mas os dois extremos se encontram no desejo de ter um Estado mais protecionista no comércio, intervencionista paternal. Le Pen, por exemplo, fala em reduzir de 62 para 60 anos a idade mínima para aposentadoria — música para os ouvidos da Confederação Geral do Trabalho (CGT), dominada pelos comunistas.
Macron, por sua vez, que veio do setor financeiro e foi ministro da Economia, antes de romper com Hollande e criar seu movimento Em Marcha!, em 2016, segue a cartilha liberal das reformas trabalhistas e da redução de impostos e de gastos.
“Votei em Macron e votarei de novo por sua política econômica, interna e externa, e porque um pouco de juventude no governo também não faz mal”, diz Mateo Campena, de 27 anos, sommelier em um hotel de Paris. “E para sair um pouco desse sistema patriarcal de políticos. A Europa e o mundo precisam rejuvenescer.” Campena não tem uma opinião definitiva sobre a reforma trabalhista: “Ainda não fomos afetados por ela. Se é uma solução boa ou ruim, não sei dizer. Mas me parece correto”.
Considerando que o terceiro colocado no primeiro turno foi o centro-direitista François Fillon, do partido Os Republicanos, que como Macron defende as leis de mercado e a continuidade da França na União Europeia, a vida do líder do Em Marcha! deveria ser mais fácil. Mas as coisas nunca são simples na França. De acordo com pesquisa do instituto Ifop-Fiducial, 50% dos eleitores de Fillon irão por Macron, 37% se abstêm, votam branco ou nulo e 13% optam por Le Pen.
Entre esses está o desempregado Christoph, de 58 anos, que antes trabalhava numa casa lotérica. “Macron é jovem demais, não está preparado para ser presidente e não se pode dar legitimidade demais para ele”, justifica Christoph, que como muitos eleitores de Le Pen preferem não dar seu sobrenome, por temer represálias. “É um excelente aluno e tem seu mérito: vai renovar o jogo político.”
Christoph está longe de ser um entusiasta de Le Pen: “Depois do debate de quarta-feira acho que ela não tem estofo para ser chefe de Estado”.
Ele diz que votou em Fillon “em primeiro lugar por seu programa, em segundo porque tem uma carreira política digna de preencher a função de chefe de Estado e em terceiro porque o conheço e ele sempre tem sido o mesmo na TV e nas ruas”.
Fillon despontou como favorito nas eleições depois de vencer as primárias dos Republicanos em novembro, mas caiu em desgraça por causa de um escândalo de pagamentos de salários irregulares por seu gabinete de senador a sua mulher e filhos. Ele negou irregularidades, e isso convenceu eleitores como Christoph, que também votou em Nicolas Sarkozy, dos Republicanos, em 2007, quando se elegeu presidente, e em 2012, quando perdeu para Hollande.
“Tudo o que se fez para sujar sua campanha se revelou pior no campo adversário”, condena Christoph, referindo-se a um escândalo envolvendo o pagamento de salários do gabinete de Le Pen no Parlamento Europeu para um guarda-costas pessoal e uma assessora que ficava em Paris, não em Estrasburgo, a sede do órgão. “Acho que essa eleição acabará totalmente inválida por causa do que aconteceu com Fillon.”
Como muitos analistas, o fiel eleitor republicano prognostica que “o terceiro turno” dessas eleições ocorrerá no mês que vem, na Assembleia Nacional. De fato, no híbrido francês de presidencialismo e parlamentarismo, a estabilidade do governo dependerá do que acontecer naquela eleição de dois turnos, dias 11 e 18 de junho (o sistema é distrital, e se nenhum candidato obtiver mais da metade dos votos, disputará com o segundo colocado em sua circunscrição).
Os dilemas e as polêmicas dos franceses sobre a política econômica, a imigração, o terrorismo e a União Europeia portanto não terminam nesse domingo, mas os continuarão dividindo pelas próximas semanas.
Na divisão de poderes, no entanto, política externa e defesa estão a cargo do presidente, enquanto a condução do dia-a-dia do governo fica para o primeiro-ministro, seu gabinete e o Parlamento que os elege. É por isso que essa eleição é tão importante para a Europa e para o mundo: uma União Europeia sem a França, como quer Le Pen, ficaria inteiramente esvaziada.
No debate de quarta-feira, Le Pen, com sua língua afiada, disse que, a partir deste domingo, em qualquer caso, a França passará a ter uma presidente mulher: seja ela ou a chanceler Angela Merkel, sugerindo que Macron manteria a França subjugada à Alemanha. Por trás desse discurso há uma nostalgia em relação ao período do franco francês, quando segundo muitos eleitores de Le Pen o custo de vida era mais baixo, e também a um maior protecionismo.
Como nos Estados Unidos, muitos franceses, sobretudo os que trabalhavam nas indústrias e minas fechadas por causa da concorrência internacional, sentem-se abandonados pela globalização (que eles chamam de “mundialização”).
Isso é especialmente verdadeiro na região de Norte-Passo-de-Calais, antes chamada de Bacia Mineira, por causa da exploração do carvão, e que também se desindustrializou. Na cidade de Hénin-Beaumont, que fica nessa região, o prefeito Steeve Briois é o presidente interino da FN, e Le Pen mantém seu domicílio eleitoral. Sua votação na cidade no primeiro turno, 45%, foi mais do dobro de sua média nacional, de 21%.
Noutras regiões mais prósperas, no entanto, os franceses buscam respostas diferentes para suas aflições, seja o desemprego, os impostos altos, a insegurança causada pelo terrorismo e os transtornos causados pela onda de imigração.
ATAQUES CIBERNÉTICOS
Assim como aconteceu com a democrata Hillary Clinton na eleição americana, Macron tem denunciado ataques cibernéticos contra sua campanha. Às 23h55 desta sexta-feira, cinco minutos antes do encerramento oficial da campanha, seu movimento Em Marcha! divulgou um comunicado, declarando-se vítima de “uma operação inédita em uma campanha eleitoral francesa”, definida como “uma ação de pirataria maciça e coordenada que deu lugar esta noite à difusão nas redes sociais de informações internas de natureza diversa (emails, documentos contábeis e contratos)”.
Segundo o comunicado, estão circulando documentos “obtidos há várias semanas graças ao hacking de contas de email pessoais e profissionais de vários responsáveis do movimento”. Os documentos verdadeiros são misturados com muitos falsos, para dar a impressão de serem autênticos, segundo a equipe de Macron.
Em meados de fevereiro, o Em Marche! denunciou estar sofrendo “centenas, talvez milhares de ciberataques provenientes das fronteiras russas”. A mesma fonte das invasões de contas de email da campanha de Clinton, conforme investigações do FBI.
No fim do mês passado, a empresa de segurança cibernética Trend Micro confirmou o envolvimento, nos ataques à campanha de Macron, do grupo Pawn Storm, que tem realizado trabalhos para o governo russo.
Duas horas antes do debate de quarta-feira, começaram a circular na internet documentos que supostamente comprovariam que Macron teria tido contas no paraíso fiscal de Saint-Christophe-et-Niévès, uma ilha no Caribe. A versão foi disseminada no Twitter com a hashtag #MacronCacheCash (“Macron esconde dinheiro”).
Durante o debate, Le Pen fez uma referência a isso: “Preste atenção no que eu lhe digo, senhor Macron. Espero que não apareça nada esses dias. Espero que não apareça que o senhor teve uma conta offshore nas Bahamas”.
A pedido da campanha de Macron, no dia seguinte o Ministério Público abriu uma investigação preliminar sobre “falsas notícias com o objetivo de manipular as eleições”. O jornal Le Monde examinou os documentos em inglês postados na internet e constatou que eles parecem ter sido copiados dos contratos, redigidos na mesma língua, revelados pela investigação dos Panama Papers, no ano passado. Entretanto, o jornal encontrou três falhas que sugerem que eles podem ter sido forjados: a data está na ordem de dia, mês e ano, como se usa em francês, e não de mês, dia e ano, como seria o usual em inglês; as páginas não estão numeradas e não há os endereços das empresas envolvidas, como ocorre com os contratos autênticos.
Trump apoia Le Pen. O Breitbart News, site ultra-nacionalista americano fundado por Stephen Bannon, estrategista do presidente, tentou criar uma versão em francês para apoiar a candidata da FN, mas recuou porque os domínios com seu nome haviam sido preventivamente reservados por um jovem ativista anti-FN.
O jogo é pesado.
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