Eleições na Itália confirmam crescimento de fascistas

Na Itália, o partido fascista cresceu quase dez vezes nas eleições de domingo pregando o ódio e a expulsão de imigrantes, sobretudo os africanos

Mussolini (em foto de 1939): partidos fascistas são proibidos na Itália, mas, como aqui, ninguém respeita muito as regras | Keystone/ Hulton Archive/ Getty Images

O hino nacional italiano ecoou na simbólica Praça do Panteão de Roma, onde está o templo construído há 2 mil anos pelos imperadores romanos. Na noite da quinta-feira 1o de março, cerca de 1.000 pessoas se reuniram na praça para o encerramento da campanha do partido fascista CasaPound, para as eleições do novo Parlamento e do novo governo na Itália, realizadas no domingo, dia 4. Para estar na praça, cruzaram o cerco dos carabinieri, os policiais militares que abordavam e revistavam um a um. Os carabinieri estavam preocupados em evitar os confrontos com esquerdistas que costumam marcar as manifestações do CasaPound. Apesar do frio e da umidade, quando os acordes do hino italiano soaram, os militantes fascistas cantaram eletrizados: “Irmãos da Itália, a Itália despertou…”. A pequena multidão agitou bandeiras da Itália e do movimento, representado por uma tartaruga — símbolo da sobrevivência.

O CasaPound recebeu esse nome em homenagem ao poeta americano Ezra Pound, que viveu na Itália e apoiou Benito Mussolini entre os anos 1920 e 1940. O movimento foi criado em dezembro de 2003, quando seus militantes ocuparam um prédio público perto da Estação Termini de Roma e o batizaram de CasaPound. Hoje, o movimento tem 110 filiais, espalhadas pelo país. O único prédio ocupado, segundo eles, é o de Roma. Nos outros, pagam aluguel. Nestas eleições, o CasaPound não obteve a votação mínima necessária — 3% — para ter representação no Parlamento. Mas praticamente decuplicou seu número de votos. Em 2013, o partido obteve 47.691 votos (0,14%) para a Câmara. Agora, foram 310.793 votos (0,94%). Abertamente fascista, o CasaPound é parte de um fenômeno muito maior que vem se repetindo em vários países da Europa e agora ocorreu na Itália: o crescimento eleitoral de partidos antissistema, ultranacionalistas, extremistas de direita, anti-União Europeia, anti-imigração.

Uma lei de 1952 proíbe partidos fascistas na Itália. Mas, como no Brasil, algumas leis não pegam na Itália. Os remanescentes fascistas hoje se distribuem por partidos como CasaPound, Liga, Irmãos de Itália (FDI, na sigla em italiano) e Itália aos Italianos. Todos têm sua origem no Movimento Social Italiano (MSI), uma frente de grupos fascistas formada logo depois da queda de Mussolini, em 1946. No seu auge, o MSI chegou a ter 2,7 milhões de votos (9%), nas eleições de 1972.

Nas eleições do dia 4, o Movimento 5 Estrelas (M5S) foi o partido individualmente mais votado, com 10,7 milhões de votos (32,66%). Populista de um jeito singularmente italiano, o movimento não pode ser rotulado como de esquerda ou de direita e foi fundado em 2009 pelo comediante Beppe Grillo para fazer contraposição aos partidos tradicionais. Suas principais bandeiras são o assistencialismo, a democracia plebiscitária por meio da internet e uma rediscussão das regras econômicas europeias. O atual líder do M5S, Luigi Di Maio, de 31 anos, vice-presidente da Câmara e candidato a primeiro-ministro, é filho de um militante do msi. O M5S disputou a eleição sem fazer aliança com outros partidos e, mesmo tendo obtido o maior número de votos, pode terminar fora do governo.

A coalizão com maior número de votos foi a de centro-direita, em que o partido nacionalista e xenófobo Liga foi o mais bem votado. Criado em dezembro a partir do grupo separatista Liga do Norte, o partido obteve 5,7 milhões de votos (17% do total) para a Câmara dos Deputados e superou pela primeira vez o Força Itália, do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, seu principal parceiro de coalizão, que obteve 14%. Pelo acordo entre os quatro partidos da coalizão, o líder da Liga, Matteo Salvini, pode se tornar primeiro-ministro se convocado pelo presidente Sergio Mattarella a formar governo. Da aliança, faz parte também o partido ultranacionalista Irmãos da Itália (FDI), rotulado pelos seus críticos de “fascista”, mas que não se assume como tal. O FDI recebeu 1,4 milhão de votos para a Câmara, assegurou 19 cadeiras e mais que dobrou de tamanho em cinco anos. Em 2013, o FDI tivera 666 mil votos para a Câmara e conseguira eleger nove deputados. Outra coalizão fascista, Itália aos Italianos, teve 126.207 votos ou 0,38% — bem melhor do que concorrentes com grande tradição na Itália, como o Partido Comunista, que recebeu apenas 106.182 votos para a Câmara.

No comício de encerramento do CasaPound, o primeiro a discursar foi Mauro Antonini, candidato a presidente da região do Lácio (equivalente a governador). Ele prometeu reestatizar os serviços públicos da região onde fica Roma (na votação de domingo, Antonini teve 0,8% dos votos, e o atual presidente do Lácio, Nicola Zingaretti, de centro-esquerda, foi reeleito). O segundo e último a subir no palanque, cercado de seguranças com coletes vermelhos, foi o secretário-geral do CasaPound, Simone Di Stefano, candidato a primeiro-ministro pelo partido. Recebido com gritos de “Obrigado”, Di Stefano, um artista gráfico de 41 anos, barba e cabelo bem aparados, usava um sobretudo escuro e gravata violeta. Ele denunciou uma conspiração da União Europeia e das multinacionais para “escravizar”os trabalhadores e pôr fim à civilização italiana. “As multinacionais pagam € 800 de salário, transformam os trabalhadores em escravos, com a aprovação da esquerda. Se uma multinacional quiser demitir 500 pais de família, vamos intervir, tomar as máquinas dela e todos continuarão trabalhando. É isso que tem de fazer um Estado soberano, dizer para essas multinacionais irem fazer isso no Camboja; aqui não”, discursou Di Stefano. Ele prometeu ainda benefícios para as famílias terem mais filhos; restituir a proteção contra demissão sem justa causa, abolida pela reforma trabalhista; continuar restringindo a cidadania ao direito de sangue, ou seja, só para os filhos de italianos; e expulsar imigrantes.

Os discursos do CasaPound têm a virtude de serem curtos. Di Stefano terminou o seu em 15 minutos. Uma moça em cadeira de rodas foi erguida ao palanque, para ficar ao lado do dirigente, enquanto o hino nacional era entoado com fervor pelos presentes. “Estamos prontos para a morte, a Itália chamou”, foram os últimos versos. Di Stefano concedeu então uma entrevista a época. Ele nunca ouviu falar em Jair Bolsonaro. “Mas, se é um nacionalista no Brasil, está em sintonia conosco.” Sobre o ex-presidente Lula, respondeu com a habitual desconfiança em relação aos meios de comunicação, acusados pelo CasaPound de fazer uma cobertura injusta do movimento. “O que sei sobre Lula é o que sai no noticiário da grande imprensa, que eu não posso verificar. Tudo o que chega à Itália é filtrado.”

Di Stefano se diz sintonizado com o nacionalismo de Bolsonaro | Stefano Montesi/ Corbis/ Getty Images

Di Stefano é um crítico dos resultados obtidos pela Operação Mãos Limpas (1992-1994), na qual se inspirou a Lava Jato. “Desmantelaram a Primeira República”, afirmou, referindo-se ao sistema político que vigorou entre o restabelecimento da democracia, no fim da Segunda Guerra Mundial, e o encerramento da operação, em 1994. “Havia muitos ladrões, mas havia também muitos estadistas, que lutavam pela soberania desta nação muito mais que os partidos de hoje em dia”, lamentou. “Os políticos da Segunda República venderam tudo aos estrangeiros: o Estado, a lira, as empresas públicas”. O passado em que a Itália era governada por Il Duce é uma referência ainda melhor, na visão de Di Stefano. “Esta cidade, assim como esta nação, está repleta de hospitais, estádios, linhas do metrô construídos por Mussolini. A Itália funcionava melhor do ponto de vista econômico, social e industrial. Olhamos aquele passado para buscar soluções para o futuro.”

Os militantes do CasaPound denunciam a “escravização” dos trabalhadores italianos pelas multinacionais | Tiziana Fabi/ Afp

O slogan de campanha do CasaPound, “Primeiro a Itália”, assim como a hostilidade do movimento à globalização, lembra Donald Trump. Di Stefano disse que o presidente americano “está fazendo algumas coisas boas, como trazer as fábricas de volta aos Estados Unidos”, mas faz ressalvas ao governo Trump: “Não gostamos de jeito nenhum de sua política externa. Pensávamos que haveria mudança de rumo, mas continuam fazendo exatamente as mesmas coisas que antes”. Na fachada da sede do movimento, há uma bandeira da Síria. O grupo apoia o regime de Bashar al-Assad e está alinhado com o presidente da Rússia. “Vladimir Putin seria um parceiro estratégico extraordinário dos pontos de vista militar e energético. Fora da União Europeia, há todo o mundo: a Rússia, o Japão, a China, os Estados Unidos, o Canadá, a América do Sul… Aqui se tem a impressão de que sair da ue significaria precipitar-se no mar. Não. Há o planeta todo.”

Apesar das semelhanças, o grupo não se identifica com os movimentos ultranacionalistas europeus. “CasaPound tem uma visão socialista”, disse Di Stefano. “Portanto, ele se contrapõe muito ao liberalismo e à globalização. Temos poucas relações com movimentos estrangeiros que não fazem uma crítica ao liberalismo econômico.” Na França “a Frente Nacional (de Marine Le Pen) faz, um pouco”, disse ele. “Alternativa para a Alemanha, não. Geert Wilders (líder ultranacionalista da Holanda) é um liberal, nada a ver. O Ukip (partido do Reino Unido que fez campanha pelo Brexit) parece simpático, mas é a expressão do setor financeiro, do liberalismo”. Ao mesmo tempo que faz discurso antiliberal, o CasaPound tenta revestir suas propostas de uma roupagem humanitária. “Muitos países africanos são vítimas das grandes multinacionais e do capital, que só exploram suas riquezas”. Ele disse que não expulsaria os imigrantes com empregos formais na Itália. “Simplesmente temos aqui na Itália 500 mil que não têm nenhum futuro, que arriscam acabar na rua, pedindo esmola ou vendendo drogas”, afirmou. “Vamos criar para eles um futuro na África, com investimentos em grandes projetos de infraestrutura, que fazem muita falta lá.”

Liga, CasaPound, M5S e todos os movimentos populistas, nacionalistas e fascistas italianos se unem na defesa dos direitos dos trabalhadores a salários “dignos”, dos contratos estáveis e na luta contra a precarização. A base eleitoral deles é a mesma de Trump e dos grupos ultranacionalistas europeus: os trabalhadores brancos que se sentem prejudicados pela globalização. O encanador Andrea Tosi, de 43 anos, viajou 200 quilômetros, de sua cidadezinha de Grosseto, na Toscana, até Roma para assistir ao comício de encerramento do CasaPound. “Gosto bastante do CasaPound porque faz parte da nossa identidade”, disse Tosi, que viveu no Brasil entre 1996 e 2016. Desde que voltou para a Itália, ele não conseguiu emprego e considera que os imigrantes, ao aceitar salários muito mais baixos, roubam os empregos dos italianos. “Aqui, se as coisas não mudam, vai acabar nossa cultura. Essa é a nossa cultura”, disse Tosi, apontando para o Panteão, que abriga os túmulos de alguns heróis italianos — entre eles, o pintor renascentista Rafael e o primeiro rei da Itália, Vítor Emanuel ii, “pai da pátria”. “A gente ama isso. Nós, os brasileiros, os argentinos, temos a mesma origem. Os islâmicos não têm respeito pela nossa cultura. Os africanos não entendem.” Por muito tempo, os italianos do norte, mais ricos, desdenhavam dos compatriotas mais pobres, referindo-se ao sul da Itália como a África. Hoje, para uma parcela crescente, a África é apenas a África.

Publicado em Revista Época. Copyright: Grupo Globo. Todos os direitos reservados.

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