Os mitos e os dilemas do “crescimento sem empregos”

Os últimos 25 anos foram difíceis para os empregos de baixa qualificação. A tendência vai se intensificar, especialmente nos emergentes

DESEMPREGO: desde 1991 foram criados 1 bilhão de vagas no mundo, mas a falta de qualificação vai pesar cada vez mais | Paulo Whitaker/ Reuters

Marrakech — Não faltam empregos. O que falta é capacitação adequada exigida pelos novos empregos. Essa foi a conclusão de um debate sobre a questão econômica mais angustiante do nosso tempo, o “crescimento sem emprego”, entre seis especialistas — três franceses, uma americana, um português e um senegalês. Eles se encontraram na sexta edição dos Atlantic Dialogues, uma conferência que reúne líderes e pensadores da Europa, África e Américas para discutir o desenvolvimento dos países banhados pelo Atlântico.

A falta de capacitação é o único consenso entre os economistas, que divergiram fortemente sobre a conveniência de adotar o modelo americano “easy to fire, easy to hire” (fácil de demitir e de contratar).

Jean Hervé Lorenzi, presidente do Círculo dos Economistas, um instituto de pesquisas independente em Paris, começou colocando em dúvida o próprio conceito de crescimento sem emprego. “De 1991 para cá se criaram 1 bilhão de empregos, e o desemprego caiu”, lembrou Lorenzi. “A questão é o enigma do crescimento modificado pela tecnologia.”

Essa é também a visão de Philippe Chalmin, professor de história econômica da Universidade Paris Dauphine: “No século 20, e principalmente desde os anos 50, houve enorme crescimento do emprego”, disse ele. “Foi o desenvolvimento do Terceiro Mundo, sobretudo com a crise que enfrentamos nos últimos anos, que não atendeu totalmente às expectativas.”

Chalmin procurou afastar as visões catastrofistas lembrando que, em 1950, a ONU estimava que o crescimento populacional seria de 1% por ano. No entanto, ele chegou a 5% anuais. “Foi o maior choque demográfico que a humanidade conheceu, e todo esse choque foi absorvido pela geração de empregos”, argumentou o professor. Nos anos 60, recordou ele, estudos afirmavam que o planeta Terra só teria condições de nutrir 4 bilhões de pessoas; hoje são quase o dobro: 7,6 bilhões, e a fome diminuiu.

O consultor Paulo Portas, ex-chanceler e vice-primeiro-ministro português, salientou que a visão econômica clássica era a de que populações jovens têm desemprego elevado, enquanto as mais envelhecidas, com taxa de fertilidade baixa, registram índices menores de desemprego.

“Mas é preciso separar Europa de Estados Unidos”, continuou Portas, que foi líder do partido de direita Centro Democrático e Social – Partido Popular (CDS-PP). A Europa é uma sociedade envelhecida com desemprego elevado entre os jovens, definiu. Os Estados Unidos, menos envelhecidos, têm pleno emprego.

“O que faz a diferença é a flexibilidade essencial da economia americana comparada com essa cultura perigosa de direitos adquiridos, que nunca vai financiar esses direitos, que é a europeia”, criticou Portas.

“Um americano muda de emprego 11 vezes em sua vida, enquanto que um europeu muda 3 a 4”, assinalou o ex-dirigente português, cotado para ser candidato a presidente. “Os americanos dispõem de 0,4% (do PIB) de capital de risco para começar seus negócios. Já os europeus, de 0,03%. Isso significa financiamento de boas ideias que se transformam em bons negócios.”

Porta continuou comparando: “Os americanos têm impostos moderados e proteção social limitada. Os europeus, impostos elevados e proteção social elevada. A Europa se tornou rígida num mundo flexível. A palavra chave é flexibilidade: easy to fire, easy to hire.”

Foi justamente a americana do grupo, Isabelle Tsakok, doutora em economia por Harvard e pesquisadora do OCP Policy Center, que promove os Atlantic Dialogues, quem primeiro se insurgiu contra as ideias de Porta.

“Será que devemos ter uma sociedade como os EUA, tão brutal que as pessoas se mudam 11 vezes?”, perguntou Tsakok, nascida nas Ilhas Maurício, e que estudou também na London School of Economics e trabalhou no Banco Mundial. “Isso não é voluntário, mas forçado. Os EUA não são um modelo a replicar. Podem não ser tão rígidos quanto a Europa, mas essa flexibilidade tem custo humano muito elevado”.

A economista, de origem étnica chinesa, citou Thomas Piketty, autor de O Capital no Século 21: “Quando a taxa de retorno do capital excede o índice de crescimento, a desigualdade aumenta, e se torna uma ameaça à democracia”. Mais tarde, conversando com EXAME, Tsakok contestou a tese da mobilidade do emprego nos EUA, afirmando ela tem diminuído, e disse que os salários americanos estão estagnados desde o governo de Ronald Reagan, nos anos 80.

Porta rebateu: “Prefiro emprego instável do que desemprego. O que a senhora chama de brutalidade é emprego e crescimento”. Ele lembrou ainda que, das dez maiores empresas de tecnologia do mundo, nenhuma é europeia. “Os Estados Unidos não são só capitalismo”, acrescentou o português. “Também tem as melhores universidades do mundo. E as duas coisas estão interligadas.”

Lorenzi procurou desmontar a tese de Porta apontando o caso da Alemanha: “É um sucesso comercial, com pleno emprego”, ponderou. Ao que Porta rebateu: “São os melhores da Europa. E são mais flexíveis que os outros, porque (o ex-chanceler Gerhard) Schroeder flexibilizou (as leis trabalhistas).

“Todos estamos de acordo que o medo da tecnologia é causado pelo efeito sobre a desigualdade”, considerou Dadush. “A teoria econômica diz que salários vão se ajustar pela demanda. Não diz que vão ser iguais.” A tecnologia, lembrou o economista, “substitui trabalho não qualificadcado pela máquina”. Ele acha que os EUA “se ajustaram melhor à globalização que os europeus”, mas ao custo da desigualdade. “O salário real americano está estagnado há 40 anos”, disse Dadush. “(A eleição do presidente Donald) Trump é um resultado disso, e com suas políticas ele vai aumentar essa desigualdade.”

Finalmente Tsakok fez a constatação com que todos concordaram: “Há muito emprego. O que há é um crescimento do emprego de alta produtividade. As pessoas sem qualificação é que sofrem com o desemprego”. Na China, disse ela, no período do crescimento anual de 10%, apenas 0,6% de empregos líquidos eram criados. “Por causa do aumento brutal da produtividade”, ponderou Porta.

O papel da educação 

Um pesquisador do OCP na plateia observou que a educação e a formação profissional disponíveis na maior parte do mundo precisam ser ajustadas às demandas do mercado. Dadush concorda: “As pessoas falam de educação como se fosse um elixir mágico. Educação em quê? O que você sabe fazer?”, perguntou ele. “Eu li Shakespeare, mas não posso engajar um especialista em Shakespeare no que eu faço. Nem um sociólogo.”

Nesse sentido, disse Dadush, os últimos 25 anos foram muito ricos em desenvolvimento tecnológico e difíceis para o emprego. “Houve um decréscimo em termos líquidos” na abertura de vagas, segundo Dadush. O emprego cresceu 2% ao ano no mundo, enquanto a população cresceu mais depressa. No mundo industrial, esse índice foi de 1,3% ao ano, disse ele.

“A sociedade que envelhece tem permitido manter participação mais ou menos no mesmo nível, considerando a população em idade de trabalhar”, analisou o economista. “Nos países mais pobres, houve 3% por ano de crescimento do emprego. Mas não é suficiente”. Dadush deu o exemplo do Marrocos, “onde 40% da população vive da agricultura, em grande parte de subsistência, e precisa e deseja se deslocar”.

Sentado ao lado do repórter de EXAME, o brasileiro Alfredo Valladão, professor na Sciences Po, em Paris, lembrou que foi exatamente essa constatação, da necessidade de dar aos imigrantes do campo acesso à educação e a novas oportunidades de trabalho, que levou a França a criar a rede de ensino público, no século 19.

Especialista em economia agrícola, Tsakok assinalou que o desemprego nos países de vocação agrícola, como os da África Subsaariana, é diferente. “A transformação da agricultura não está à altura do desejável nesses países”, observou ela. “É uma profissão antiga. Chegamos ao século 21 e ela não muda.” Isso explica, em parte, por que a África tem um crescimento econômico elevado e pouca prosperidade, ou uma riqueza muito mal distribuída.

EXAME perguntou a Jorge Arbache, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, presente na conferência, como o Brasil se encaixa nessa discussão.

“Mais de 80% dos empregos formais criados no Brasil no período 2004-2013 se concentraram no setor de serviços, em especial em segmentos de baixa produtividade e baixa agregação de valor e voltados para o consumo das famílias”, analisou ele.

“Esses segmentos foram impulsionados pelo crédito, políticas sociais, despesas públicas, Lei do Micro-Empreendedor Individual, entre outros”, continuou Arbache. “Logo que a economia entrou em recessão, muitos daqueles empregos foram perdidos. A causa principal é que se tratava de empregos frágeis e muito dependentes das condições conjunturais.”

Numa análise que se aplica aos países emergentes em geral, o economista acrescentou: “Estamos experimentando uma profunda mudança na geografia da produção e do emprego. As novas tecnologias de produção e de gestão da produção estão levando de volta para os países avançados fábricas antes em países em desenvolvimento”.

Ele diz que o custo do trabalho está perdendo importância como fator competitivo. “Fábricas super-automatizadas fazem mais por menos e melhor do que naqueles países (de mão-de-obra barata)”, explicou Arbache. “Segundo, as plataformas digitais e o e-commerce já estão criando e deslocando milhões de empregos em favor dos países avançados e China.”

E acrescentou: “A commoditização digital faz com que tecnologias estejam barateando significativamente . Com isto , mesmo países emergentes estão adotando tecnologias poupadoras de mão-de-obra”.

A aflição do crescimento sem emprego não é um “privilégio” dos países avançados. Pelo contrário. Ela pode afetar ainda mais fortemente os menos desenvolvidos. É melhor acordar para isso.

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