Dentro, ‘pero no mucho’

Depois de meses de “shuttle diplomacy”, o primeiro-ministro David Cameron arrancou dos outros 27 integrantes da União Europeia um regime de exceções para a Grã-Bretanha continuar dentro do bloco sem obedecer a certas obrigações atuais e futuras impostas pelos “eurocratas”. Os temas tratados pelo acordo são variados. Vão desde o “micro-gerenciamento” de Bruxelas em questões do cotidiano dos cidadãos até os benefícios sociais aos imigrantes dos países membros do Leste Europeu. Mas a questão econômica central é a regulação dos mercados financeiros.

A resistência dos ingleses à integração europeia é tão antiga quanto ela mesma. A Grã-Bretanha não participou da fundação da Comunidade Econômica Europeia, em 1957, e só ingressou na zona de livre comércio em 1973. Como a geografia é mãe da história, os ingleses inevitavelmente têm mentalidade de ilhéu, dirigem “do lado errado” e se referem àquela imensa massa de terra do outro lado do Canal da Mancha como “o continente”. Nas duas décadas de existência da União Europeia, fundada em 1993, a participação britânica nesse grupo de países cada vez maior e mais integrado tem sido um tema extremamente politizado no Reino Unido, que divide o Partido Conservador, de Cameron. Dos 21 secretários do gabinete, 8 farão campanha pela “Brexit”, a saída britânica do bloco, no referendo do dia 23 de junho. Pesquisas e casas de apostas indicam que a maioria votará pela permanência, como defende Cameron, depois de colocar a espada da saída da segunda maior economia do bloco, se não fosse atendido.

A sensação de ameaça externa é sempre valiosa matéria-prima explorada pelos políticos de todos os matizes e lugares do mundo. Muitos ingleses vêem a integração europeia como ameaça a seu estilo de vida. E não é preciso ir longe. Nada mais diferente de um inglês do que um francês, aquele povo “esquisito” do outro lado da Mancha. A super-extensão da União Europeia em direção ao mundo eslavo eleva o estranhamento à ojeriza. Essa psicologia difusa serve de apoio político para a defesa de interesses bastante concretos.

A Grã-Bretanha sempre se manteve com um pé dentro e outro fora, europeia “pero no mucho”, não aderindo a arranjos mais comprometedores, como a Área de Schengen, criada em 1995, que permite o livre trânsito de pessoas, e a zona do euro, em circulação desde 1999. Tempestades como a avalanche de refugiados da Síria e da Líbia e a falência da Grécia têm reconfortado os ingleses em seu isolamento.

Neste momento, o interesse concreto em jogo é a preservação da liberdade da City londrina. O mercado financeiro responde por 10% do PIB do Reino Unido. Cameron assegurou na cúpula de Bruxelas de 18 e 19 de fevereiro a prerrogativa do Bank of England de supervisionar as instituições financeiras britânicas, contra o poder regulatório crescente do Banco Central Europeu.

A Grã-Bretanha reconhece os ganhos da zona de livre comércio, ou seja, da derrubada de tarifas alfandegárias para os bens agrícolas e industriais. Mas não tem certeza dos benefícios do próximo passo dessa marcha — a inclusão dos serviços financeiros. Os serviços são o setor mais delicado, e sempre o último, em um processo de integração. A Parceria Transpacífico (TPP, em inglês), selada no dia 4 de fevereiro, com a adesão de 12 países, incluindo Chile, Peru e México — a Colômbia deverá entrar também —, engloba 18 mil tarifas de produtos agrícolas e industriais, mas deixa o setor de serviços para uma próxima etapa. Além de serem intensivos em mão-de-obra e envolverem maciçamente pequenos negócios, os serviços têm um nível de especialização e características locais muito mais pormenorizadas do que os produtos agrícolas e industriais.

A resistência da Grã-Bretanha ao aprofundamento da União Europeia e o ritmo da integração do Transpacífico servem para sublinhar o consenso mundial acerca dos ganhos na derrubada das barreiras comerciais. Com toda a sua precaução frente ao continente, os britânicos não questionam as vantagens da zona de livre comércio. E quanto à Parceria, ela foi a resposta dos Estados Unidos ao crescente poder da China, excluída do bloco. “Com a TPP, a China não estabelece as regras naquela região, nós o fazemos”, declarou o presidente Barack Obama no seu discurso sobre o Estado da União, no dia 12 de janeiro.

O que o Brasil tem a ver com tudo isso? Nada. O Brasil, que não é ilha, mas continente, tem se excluído dos acordos comerciais. Na psique brasileira, emoldurada pelo senso de inferioridade, qualquer indústria de qualquer país ligeiramente avançado — o que exclui os vizinhos do Mercosul, que mesmo assim exibe uma lista de exceções maior que a das tarifas liberadas — representa uma ameaça. A baixa auto-estima dos brasileiros é compensada por uma fantasia segundo a qual um dia seremos bons em tudo — e enquanto nos preparamos para isso, não vamos facilitar as coisas para nossos concorrentes. O protecionismo industrial data dos anos 70, com os resultados visíveis. E mesmo assim continuamos esperando o surgimento das incríveis marcas brasileiras — que não surgem exatamente porque os industriais daqui não têm o incentivo da concorrência para investir em inovação. A má notícia é que o mundo não espera.

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