Atrito entre Major e Clinton sobre Irlanda mostra que Londres já não pesa tanto
LONDRES – “A Grã-Bretanha não é uma prioridade.” A frase de um repórter do The Washington Post que cobre a Casa Branca, dita a dezenas de milhões de atônitos telespectadores britânicos no telejornal da noite, soou como um veredito. Poucos dias depois de o ministro britânico para a Irlanda do Norte, sir Patrick Mayhew, ter ido a Washington pedir que Gerry Adams, líder do Sinn Fein, o braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA), não fosse recebido por Bill Clinton, foi exatamente isso o que o presidente americano fez na quinta e sexta-feira.
O próprio sir Mayhew, enviado do primeiro-ministro John Major, supostamente o chefe de governo do mais próximo aliado dos EUA, foi recebido pelo vice-presidente Al Gore. Já Adams, que há um ano constava da lista negra do terrorismo do Departamento de Estado, usufruiu de um aperto de mão e cinco minutos de conversa com Clinton. A ocasião foi carregada de simbolismo: as comemorações do Dia de São Patrício, o padroeiro da Irlanda. O IRA luta para que a Irlanda do Norte saia do domínio britânico e se reunifique com a Irlanda.
Uma medida da humilhação sentida por Major: o primeiro-ministro se recusou a atender um telefonema de Clinton, e ficou mais de uma semana sem retornar a ligação. Fontes do governo britânico confirmaram ao Estado que o primeiro-ministro teve um acesso de ira quase incontrolável. “Tiveram de segurar o homem”, disse um funcionário. Vários editoriais na imprensa britânica recriminaram a atitude de Clinton, e o Daily Telegraph chegou a sugerir que Major enviasse a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher a Washington para “fazer ver ao presidente que uma afronta dessa pode sair muito caro”.
A grande pergunta é: o que aconteceu com o relacionamento especial criado na 2.ª Guerra Mundial e consolidado na guerra fria, destinado a solidificar uma unificação a partir da herança comum entre os EUA e a Grã-Bretanha?
Clinton teve um motivo óbvio e premente para ignorar os apelos não só do governo britânico, mas de seu secretário de Estado, Warren Christopher, do assessor de seguramça nacional, Anthony Lake, da procuradora-geral, Janet Reno, do diretor do FBI, Louis Freeh, e do embaixador dos EUA em Londres, William Crowe. O presidente, que articula sua candidatura à reeleição no ano que vem, estava mais atento a senadores democratas poderosos, como Edward Kennedy (cuja irmã Jean é embaixadora em Dublin), que faz parte do vasto lobby irlandês no Congresso. Nos EUA há 44 milhões de descendentes de irlandeses.
Clinton tem um segundo motivo óbvio para não se preocupar demais com os sentimentos de Major. Durante a corrida presidencial de 1992, o primeiro-ministro abriu os arquivos do governo à equipe de campanha de George Bush, candidato à reeleição, para que vasculhasse atrás de algum comprovante de que Clinton, quando estudava em Oxford (anos 60), tivesse pedido cidadania britânica para não ser convocado para a Guerra do Vietnã. Um péssimo começo.
Mas há quem busque as causas também na própria Grã-Bretanha. Primeiro, na forma de um erro tático. No ano passado, Clinton já havia demonstrado que, pelo menos no que se referisse à Irlanda, não estava disposto a ouvir a palavra final da Grã-Bretanha. Concedeu visto, ainda que cheio de restrições, para que Adams visitasse Nova York, depois de o governo britânico implorar para que isso não ocorresse.
Mas o que mais interessa aos britânicos é saber se o seu país não está perdendo o valor na barganha internacional. Do ponto de vista comercial, os EUA se voltam cada vez mais para o Pacífico e as Américas. Conforme a União Européia se consolida, a Grã-Bretanha se isola e se enfraquece cada vez mais em seu papel de ilha desconfiada diante da integração continental, acatando cada resolução importante com ressalvas, como ocorreu em Maastricht em 1992. Na Europa, a Alemanha e a França emergem como interlocutores naturais.
Em sua edição anual sobre as perspectivas do ano que se inicia, a revista The Economist previu que em 1995 a relação especial iria pelo “ralo abaixo”, e explicava o porquê: “O relativo declínio econômico da Grã-Bretanha levou ao declínio político e militar.” The Financial Times de sexta-feira colocou a questão de maneira mais crua: “Os EUA não precisam mais de seu porta-aviões ancorado na costa da Europa continental.” Por esse navio, entendam-se as ilhas britânicas.
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