Lourival Sant’Anna
O primeiro-ministro David Cameron renunciou por ter sido derrotado no plebiscito que aprovou a saída britânica da União Europeia. Logo, deveria ser substituído por alguém que fez campanha pelo Brexit, certo? Errado. A próxima líder do Partido Conservador, que tem a maioria necessária no Parlamento para nomear o chefe de governo, será a ministra do Interior, Theresa May, que seguiu Cameron na campanha pela permanência. Além disso, a pasta que ela chefia é justamente a que trata da questão que levou a maioria dos britânicos a votar pela saída: imigração. No conturbado Reino Unido que emerge da decisão de sair da UE, essas nuances se transformaram justamente em credenciais para May, como alguém capaz de unir não só o seu partido, mas até mesmo o seu país. Aos 59 anos, será a segunda mulher a governar o país, depois da também conservadora Margaret Thatcher (1979-1990).
Depois de votações entre os 330 deputados conservadores, que eliminaram outros candidatos, restaram duas mulheres na disputa: May e a secretária da Energia, Andrea Leadsom, que fez campanha pela saída da UE. Nesta segunda-feira, Leadsom desistiu da disputa em favor da rival, depois de obter 84 votos, contra 199 para May. “Theresa May reúne mais de 60% do apoio do partido”, declarou a secretária, que tinha o apoio do popular deputado e ex-prefeito de Londres Boris Johnson. “Ela está na posição ideal para implementar o Brexit e prometeu fazê-lo. Concluí que os interesses de nosso país estão mais bem servidos pela implementação de uma líder forte.”
De fato, May havia descartado de forma clara a possibilidade de reabrir a discussão sobre a saída do bloco: “Brexit significa Brexit. A campanha foi disputada, a votação foi realizada, o comparecimento foi alto e o público deu seu veredito. Não deve haver tentativas de permanecer na UE, de entrar nela pelas portas do fundo nem de um segundo plebiscito”. Essa posição, combinada com a forma discreta com que apoiou a campanha pela permanência, inspira confiança nos dois lados do Partido Conservador e do país — profundamente dividido pelo resultado do plebiscito: 52% a 48%.
Como ministra do Interior, May tem implementado a linha defendida pelos conservadores quando na oposição e na vitoriosa campanha eleitoral de 2010, de restringir a imigração no país. Isso responde à principal ansiedade dos eleitores que apoiaram a saída britânica, principalmente trabalhadores de baixa escolaridade e idosos, que se sentem ameaçados pela entrada de estrangeiros. Diferentemente dos mais jovens e com níveis mais altos de instrução, aquele contingente não percebe benefícios da integração comercial, seja com a Europa, com a China ou com qualquer parte do mundo.
Em um país polarizado, a principal qualidade de May é uma certa ambiguidade, uma recusa a seguir os alinhamentos do atual debate, embora seu perfil seja o de uma conservadora moderada. “Admiro-a, mas um dia ela terá de nos revelar quem ela é”, disse um colega de gabinete da ministra, reforçando sua imagem de “enigmática”. May dá de ombros diante dessas dúvidas teóricas, e justifica suas posições como as de alguém regido pelo pragmatismo: “Eu simplesmente me atiro ao trabalho que está na minha frente”, definiu-se ela, no discurso de lançamento de sua campanha, há duas semanas.
Esse pragmatismo é reforçado pela auto-imagem de uma pessoa comum, extremamente legitimadora para um político, na psique britânica — veja-se a fachada da casa ocupada pelo primeiro-ministro, o número 10 da Downing Street, parecida com a de qualquer cidadão comum. “Eu cresci como filha de um vigário local e neta de um sargento”, disse May, deputada desde 1997 pelo distrito de Maidenhead, cidade rica a 50 km de Londres. “O serviço público tem sido parte de quem eu sou pelo tempo que eu consigo me lembrar.”
Ela procura balancear sua posição conservadora com uma sensibilidade em relação à realidade das pessoas comuns. “Se você é de uma família comum da classe trabalhadora, a vida é muito mais dura do que muitos políticos imaginam”, diz May. “Você tem um emprego, mas frequentemente não tem uma segurança no emprego. Francamente, nem todo mundo em Westminster entende isso”, arremata, referindo-se ao prédio do Parlamento britânico.
Formada em geografia em Oxford, ela trabalhou no Banco da Inglaterra, e é casada com o banqueiro Philip May. Teve uma infância confortável de classe média, mas enfrentou dificuldades também. Seu pai, pastor da Igreja Anglicana, morreu em um acidente de carro logo depois que ela se formou, em 1977, e sua mãe, que sofria de esclerose múltipla, morreu no ano seguinte.
May é conhecida como “a nova Dama de Ferro”, numa referência a Thatcher, a primeira-ministra conservadora que implementou reformas liberais nos anos 80, enfrentando os poderosos sindicatos britânicos, a começar por uma greve de mais de um ano dos mineiros, no primeiro ano de seu governo, por causa do fechamento de minas de carvão. Seus colegas a descrevem como uma pessoa “dura”, centralizadora, “difícil de trabalhar com ela”. Não que seja impossível fazê-la mudar de ideia. Mas são necessários bons argumentos. Ela não desperta muita afeição dos colegas e subordinados, mas é respeitada e admirada. Depois da derrota conservadora nas eleições de 2001, May fez uma observação que marcou seus correligionários, de que eles não voltariam ao poder enquanto fossem vistos como um “partido perverso”, no sentido de não se incomodar com os sofrimentos dos outros, com os problemas sociais.
Suas credenciais de conservadora com os pés no chão, sensível aos problemas das pessoas comuns, podem ser valiosas na nova etapa em que o Reino Unido entrará agora. Os trabalhistas, principais adversários dos conservadores, vivem uma crise de liderança, depois de terem perdido o contato com suas bases operárias, que votaram pelo Brexit, contra sua orientação. Há um campo extenso para May e os conservadores ocuparem, de todos os lados para onde olharem.
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