Sturgeon e o contra-ataque escocês

MAY E STURGEON EM JULHO: a visita à Escócia foi um sinal de boa vontade; de lá pra cá as duas tomaram caminhos opostos/ Russell Cheyne/ Reuters

Nacionalismo com nacionalismo se paga. O Reino Unido está provando de seu próprio veneno. A governadora da Escócia, Nicola Sturgeon, lançou uma campanha para um novo referendo sobre a independência da região em relação ao Reino Unido nessa segunda-feira, horas antes de a Câmara dos Lordes autorizar a primeira-ministra Theresa May a seguir adiante com o processo de retirada do país da União Europeia. A iniciativa chocou o governo britânico, diante da perspectiva de o Reino Unido partir enfraquecido, política e economicamente, para as negociações das condições de sua saída do bloco europeu.

Essa história tem a terrível marca das traições em cadeia. Se os ingleses — e agora não só os que votaram pela saída da UE — sentem o novo referendo escocês como uma apunhalada nas costas no momento em que estão fragilizados, a Escócia por sua vez o vê como a consequência natural de outra traição da “pérfida Albion”. Em 2014, 55% dos escoceses votaram contra a saída da Escócia do Reino Unido com base, entre outras coisas, na premissa de que esse era o caminho mais curto para continuar na UE. O resultado do referendo sobre o Brexit no ano passado — ainda que apertadíssimo, de 51,9% a favor e 48,1% contra — jogou por terra essa promessa.

O sentimento popular escocês ficou claro na resposta fulminante à convocação da governadora na segunda-feira, cuja meta é arrecadar 1 milhão de libras em cem dias para a campanha em favor do referendo. Na manhã desta quarta-feira, o site criado na internet para a campanha já contabilizava a doação de 262.977 libras — um quarto da meta. Bandeiras azuis com a cruz branca, da Escócia, apareceram por toda a região. O know-how adquirido em 2014, quando no início da campanha as pesquisas indicaram apoio de 27% para a independência, e chegou a 45% na votação, será agora empregado mais uma vez, impulsionado pelo incentivo de garantir a continuidade da Escócia na UE.

Entretanto, as coisas não são tão simples assim. Primeiro, porque o referendo só pode ser realizado com a autorização do Parlamento e do governo britânicos. E, a julgar pela reação irada de May, que tem maioria absoluta na Câmara dos Comuns, isso parece distante. Além disso, mesmo votando pela independência, os escoceses não teriam ingresso garantido na UE. A Espanha, por exemplo, deve se opor, por receio de que esse prêmio incentive os separatistas do País Basco a seguir o caminho da Escócia. A estratégia de May é tentar adiar esse processo para depois da saída do Reino Unido da UE, que por sua vez deve demorar dois anos.

A questão se tornou uma queda de braço entre as governantes britânica e escocesa. Em jogo, a sobrevivência política de ambas. May, que no ano passado fez campanha para que o Reino Unido ficasse na UE, tem agora a incumbência de tornar a saída a mais vantajosa — ou a menos danosa — possível para seu país. Magoados, os governos europeus não estão nem um pouco a fim de suavizar as coisas para os ingleses. Pelo contrário, querem cobrar caro pela aventura, para desencorajar outras deserções. E cobrar caro, aqui, é literal: pelas contas da Comissão Europeia, o Reino Unido deve 57 bilhões de euros ao bloco até 2020. Essa é a fatia do país no orçamento dos projetos europeus aprovados para os próximos anos — pelos quais, na visão de Bruxelas, o Reino Unido tem responsabilidade, já que votou o orçamento.

O Brexit foi vendido aos britânicos como uma decisão que os pouparia de arcar com os custos da UE. Mesmo tendo defendido a permanência no bloco, como ministra do Interior,  recairá agora sobre May o ônus político pelo “estelionato eleitoral”. Isso sem falar das negociações sobre o status dos emigrantes britânicos no continente (e dos europeus no Reino Unido), sobre comércio, investimentos, etc. Então tudo de que o Reino Unido não precisava era de entrar nessa negociação, que começa agora, fragilizado pela perspectiva de perder um terço de seu território, 8 por cento de seu PIB e de sua população.

Para Sturgeon, cujo Partido Nacional Escocês (SNP) tem maioria absoluta no Parlamento da Escócia, também a aposta é muito alta. O referendo de 2014 foi aprovado pelo Parlamento britânico com a promessa de que seria o último e seu resultado, definitivo. A reação indignada de Londres mostra que o custo político da aventura escocesa será alto para a Escócia. A governadora simplesmente não pode ser derrotada nesse referendo.

“A visão de túnel (de cabresto, sem perspectiva) que o SNP mostrou hoje é profundamente lamentável”, atacou May, que logo depois de tomar posse em julho foi visitar Sturgeon em Edimburgo, em um de seus primeiros compromissos oficiais, como sinal de boa vontade. “Em vez de brincar de política com o futuro do nosso país, o governo escocês deveria focar em proporcionar bons serviços públicos para o povo da Escócia. A política não é um jogo.”  Um porta-voz da primeira-ministra britânica disse que à Associated Press que o cronograma proposto pelo governo escocês, de realizar o referendo entre o segundo semestre de 2018 e o primeiro de 2019, período final da negociação dos termos do Brexit, é “o pior timing possível”, e “causaria enorme incerteza econômica”.

“Todos os nossos esforços de um acordo bateram num muro de intransigência”, justificou Sturgeon, ao propor o referendo ao Parlamento escocês. “A participação do Reino Unido no mercado comum (europeu) foi descartada sem consulta prévia ao governo escocês, deixando-nos não só com o Brexit, mas com um Brexit duro. E em vez de qualquer perspectiva de novos poderes para o Parlamento escocês, o governo do Reino Unido está se tornando cada vez mais assertivo em sua intenção de tomar os poderes que já temos. A linguagem da parceria acabou completamente.”

Sturgeon continuou, em seu histórico discurso, na segunda-feira: “Continuarei a defender os interesses da Escócia durante as negociações do Brexit. Mas adotarei as medidas necessárias para garantir que a Escócia tenha uma opção no fim desse processo, entre seguir o Reino Unido para um Brexit duro, ou se tornar um país independente capaz de assegurar uma parceria real de iguais com o resto do Reino Unido e em nossa relação com a Europa”.

No referendo de junho sobre o Brexit, 62% dos escoceses votaram pela permanência na UE e 38%, contra. “Estou criando as condições para que o futuro da Escócia seja decidido pelo povo da Escócia”, acrescentou Sturgeon em entrevista coletiva na Bute House, residência oficial da governadora.

Diante de versões segundo as quais May tentará adiar o referendo até depois das eleições escocesas de 2021, Sturgeon tuitou: “Fui eleita governadora com um compromisso claro com o referendo escocês. A primeira-ministra ainda não foi eleita por ninguém”. May foi escolhida pelo seu Partido Conservador para suceder o ex-primeiro-ministro David Cameron, que renunciou depois da derrota no referendo, no qual também fizera campanha em favor da permanência na UE.

De acordo com o cientista político John Curtice, da Universidade de Strathclyde, em Glasgow, “ninguém sabe ao certo quem venceria o referendo” sobre a independência da Escócia. Sondagem do instituto ScotCen indica vitória do “não” por 52% a 48%.

Curtice, autor do relatório de análise da pesquisa, acha que Sturgeon se precipitou ao vincular a independência com a permanência na UE. Isso porque o apoio ao bloco europeu está diminuindo na Escócia. Dois terços dos eleitores escoceses consideram que os poderes de Bruxelas deveriam ser reduzidos. Em 2014, essa fatia era de 53% e em 1999, quando a pesquisa começou a ser feita, 40%. Além disso, mesmo os escoceses que votaram em junho a favor da permanência estão questionando essa escolha, e nesse contingente 56% opinam que a UE deveria ter menos poderes.

Antes de os caminhos de May e Sturgeon bifurcarem, havia um paralelo estreito entre as duas. Ambas vêm de origem humilde. O pai de Sturgeon era eletricista e a mãe, ajudante de dentista (May era filha de um pastor protestante). Ela estudou direito na Universidade de Glasgow e começou a carreira política como líder do movimento estudantil. Sua primeira bandeira foi o desarmamento nuclear. Filiou-se ao SNP em 1986 e em 1992, aos 22 anos de idade, tornou-se a mais jovem candidata escocesa a deputada pelo Parlamento britânico, mas não se elegeu. Em 1999, perdeu a votação por uma cadeira na primeira legislatura do Parlamento escocês, mas o SNP a colocou em sua lista e ela se elegeu pelo voto proporcional.

Em 2007, no primeiro mandato do governador Alex Salmond, do SNP, foi nomeada vice-governadora e secretária de Saúde e Bem-Estar. Cinco anos depois, no segundo mandato, tornou-se secretária de Infraestrutura e Investimento em Cidades.

No referendo de 2014, Sturgeon fez campanha pela independência da Escócia. Com a vitória do “não”, Salmond renunciou ao governo e à liderança do SNP. Sturgeon imediatamente se lançou. Nenhum outro candidato quis disputar, e ela se tornou a primeira mulher a ocupar tanto a liderança do SNP quanto o governo da Escócia. Uma pesquisa na época indicou que 54% dos escoceses confiavam nela como alguém que “defende os interesses da Escócia”. Logo depois do referendo, ela declarou que a independência da Escócia era questão de “quando”, não de “se”.

Agora, Sturgeon partiu num caminho sem volta. A dúvida é se a maioria dos escoceses a seguirá. E, sobretudo, se os britânicos deixarão.

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