Pressionada pela queda do preço do petróleo, pelas sanções do Ocidente, pelos gastos militares e pelo modelo de “capitalismo de Estado” capitaneado pelo presidente Vladimir Putin, a economia russa vive a sua pior crise em duas décadas. O PIB encolheu 3,7% no ano passado, e o próprio Ministério da Economia russo prevê nova contração de 0,8% a 1% este ano, caso o barril de petróleo continue abaixo dos US$ 40, conforme documento obtido pela agência Reuters. As exportações caíram 31,5% em 2015, em comparação com o ano anterior. Com a desvalorização do rublo, o PIB per capita se reduziu para quase a metade, de US$ 15.390 para US$ 8.181. Combinado a uma inflação de 12,9%, isso tem erodido o poder de compra da população.
O desemprego está subindo lentamente, mas continua num patamar relativamente baixo, de 5,8%. A crise afeta os russos de maneiras bastante diversas. Antes da crise, desencadeada com a imposição das sanções em março de 2014, Vera Politova, de 30 anos, ganhava 75 mil rublos (hoje equivalentes a R$ 5.090, já aplicada a inflação de 27,25% do período na Rússia), como subgerente de marketing numa empresa finlandesa. A filial de Moscou foi fechada e Vera, demitida. Ela continua desempregada: “Não é fácil encontrar hoje uma vaga com condições semelhantes às que eu tinha”.
O taxista Ilya Volkov, de 42 anos, conta que continua ganhando os mesmos 50 mil rublos (R$ 3.394) por mês que tirava antes da crise — o que significa que seu rendimento real caiu mais de um quarto. “Mesmo assim, para ganhar o mesmo que antes, tenho de trabalhar mais, sacrificar dias de folga, porque não posso me dar o luxo de perder um cliente”, descreve Volkov. “As pessoas estão andando menos de táxi, e as tarifas não sofreram nenhum ajuste.”
Dona de um pequeno salão, a cabeleireira Natália Arashukova, de 42 anos, tirava em torno de 70 mil rublos (R$ 4.753) há dois anos. Ela diz que hoje a receita diminuiu muito pouco em termos nominais, e que conseguiu manter a clientela, mas suas freguesas diminuíram o número de idas ao salão.
Essa situação é comum não só entre os autônomos, mas também os empregados, cujos salários não foram reajustados, e portanto perderam para a inflação. O biofísico Igor Gudich, de 27 anos, continua trabalhando no mesmo instituto de pesquisas, e com o mesmo salário: 55 mil rublos (R$ 3.737).
Moscou é uma cidade relativamente cara — embora seu custo de vida seja 14% mais baixo que o de São Paulo, segundo o site especializado Numbeo. O aluguel médio de um apartamento de um dormitório fora do centro da cidade é 32.348 rublos, ou R$ 1.728. Os serviços de energia elétrica, água, aquecimento e coleta de lixo para um apartamento de 82 m² somam em média 6.587 rublos (R$ 352). O litro do leite está mais ou menos o mesmo preço que no Brasil: 60 rublos, ou R$ 3,19. Comer fora custa caro, como em São Paulo. Um almoço em um restaurante simples sai por 681 rublos (R$ 33,70). O litro da gasolina custa menos: 35,24 rublos, ou R$ 1,88. A passagem de ônibus, trem ou metrô também é mais barata do que em muitas capitais brasileiras: 45 rublos (R$ 2,40).
Nem todos se deram mal com a crise. O empresário Alexey Somov, de 55 anos, que era dono de uma rede de distribuição de pescados, aproveitou as barreiras às exportações para a Rússia e abriu um novo negócio, de comercialização de produtos de fazendeiros locais: leite e derivados, carnes, farinhas integrais, frutas e verduras orgânicas. “Acertei, e hoje minha receita se multiplicou várias vezes, junto com os desafios”, diz Somov, que passou a faturar mais de 1 milhão de rublos (R$ 53.274) por mês. “Apesar dos preços elevados dos produtos, clientes não faltam.” Ou seja, no nicho de mercado que ele encontrou, não há tanta crise.
Mas essa não é a realidade da maioria. A queda nos investimentos e na atividade econômica atingiu em cheio a construção civil e outros setores que empregam a mão-de-obra menos qualificada e de menor renda. Num sinal das tensões sociais, o governo criou em abril uma Guarda Nacional com um efetivo de 400 mil homens, comandados por Viktor Zolotov, ex-chefe da segurança de Putin, que se reportará diretamente ao presidente. A justificativa oficial é combater o terrorismo e o crime organizado. Mas em Moscou se acredita que a medida tem relação com a necessidade de “manter a ordem” antes das eleições parlamentares de setembro.
Na última reunião do Conselho Econômico, Alexei Kudrin, ex-ministro das Finanças e presidente do Centro de Pesquisa Estratégica de Moscou, advertiu que a Rússia está ficando muito atrás tecnologicamente e, para voltar a crescer mais de 1%, não adianta ficar esperando que o barril de petróleo retorne ao patamar acima de US$ 80, mas, sim, “reduzir as tensões geopolíticas” para “integrar o país nas cadeias produtivas internacionais”. Pelos cálculos de Kudrin, que deixou a equipe econômica em setembro de 2001 por discordâncias com Putin e seu fiel primeiro-ministro Dimitri Medvedev, as sanções custam 1% do PIB russo a cada ano.
Segundo fontes ouvidas pela imprensa russa, que presenciaram a reunião a portas fechadas, a resposta de Putin não foi exatamente animadora: o presidente teria dito que a União Europeia e os Estados Unidos precisam entender que a Rússia tem uma história de mil anos e “não vai barganhar soberania por comércio”.
No final de 2013, o governo ucraniano se preparava para iniciar os procedimentos para o ingresso do país na União Europeia. Depois de ser chamado a uma reunião com Putin em Moscou, o então presidente Viktor Yanukovitch anunciou sua desistência desse processo, e a inserção da Ucrânia na Comunidade Econômica Eurasiática, liderada pela Rússia. Em reação, eclodiram protestos em Kiev e em outras cidades, sobretudo do oeste e do centro da Ucrânia, mais permeáveis à influência europeia. Yanukovitch acabou renunciando em fevereiro de 2014.
Seguiu-se a eleição de um presidente pró-ocidental, Petro Poroshenko. A Rússia reagiu anexando a Península da Crimeia e apoiando um movimento separatista de russos étnicos no leste da Ucrânia, que degenerou em guerra civil. Os Estados Unidos e a União Europeia retaliaram, com sanções comerciais contra setores estratégicos da economia, como o do petróleo e o de armamentos. O gás russo ficou a salvo, graças à dependência europeia. Os bancos estatais russos perderam o acesso a empréstimos de longo prazo. Os EUA impuseram também restrições de viagens para empresários e autoridades próximas a Putin, bem como o congelamento de depósitos bancários tanto de pessoas quanto de empresas. Essas iniciativas representaram um golpe econômico e político contra o esquema de Putin.
Empurrado para o corner, o presidente russo transferiu a luta para outra arena. Em meados de 2015, a Rússia lançou uma campanha de bombardeios contra aliados locais dos Estados Unidos e de seus parceiros europeus na Síria. Grupos tanto seculares quanto religiosos, direta ou indiretamente patrocinados por americanos e europeus na luta contra o regime de Bashar Assad, tornaram-se os alvos preferenciais de aviões e mísseis russos. Embora a narrativa fosse combater todas as forças “terroristas” atuando no país, os bombradeios russos se concentraram no noroeste da Síria, onde se encontravam os parceiros de americanos e europeus, enquanto o nordeste, ocupado pelo Estado Islâmico, fortemente combatido pelas potências ocidentais, foi poupado. Com isso, Putin atendeu o triplo objetivo de proteger seu aliado Assad, criar um irritante para seus algozes na Ucrânia e restaurar o prestígio perdido.
Esse prestígio é central na estratégia de Putin, no poder desde 1999, de construir e preservar sua base social, por meio de um sofisticado sistema de deslocamento da autoestima e da satisfação individuais para um contentamento e fervor patrióticos. “Restaurar o status de grande potência se tornou código para restaurar a dignidade”, explica Andrei Kolesnikov, pesquisador do Carnegie Endowment em Moscou. “Êxitos na política externa compensam o fato de que a dignidade não foi restaurada dentro do país. Uma conversa de cinco minutos com a maioria dos russos revela que eles se sentem totalmente indefesos em face das pressões dos grandes e pequenos chefes, das concessionárias de serviços públicos, dos fiscais, tribunais, polícia, recrutadores do serviço militar obrigatório e até de patrulhas de rua feitas por forças irregulares.”
Segundo o pesquisador, o regime busca compensar as frustrações causadas pelo autoritarismo, a corrupção e os problemas econômicos com a suposta recuperação do papel de potência pela Rússia, que, paradoxalmente, eleva os gastos do Estado e agrava a crise da economia. “O cidadão russo pós-soviético parece — ou finge estar — satisfeito com uma sensação de pertencimento a algo grandioso e sem face, uma multidão que compartilha orgulho em si mesmo e seu líder”, analisa Kolesnikov. “O russo médio sente de novo o orgulho de ser diferente de todo mundo e está pronto para sofrer em nome do bem maior.”
Essa estratégia de Putin de permanência no poder por meio de uma agressiva projeção de poder da Rússia levou o país ao isolamento e à atual crise — sobretudo com o petróleo não mais sustentando suas aventuras militares. “Se não fosse pelas sanções, o governo russo, os bancos e as empresas poderiam ter saído da crise pegando dinheiro emprestado, especialmente porque a dívida externa não era grande”, avalia Sergei Guriev, professor de economia na Sciences Po de Paris, ex-diretor da Nova Escola Econômica de Moscou e ex-assessor de Medvedev. Ele teve de deixar a Rússia em 2013 sob pressão por causa de suas críticas.
Os 28 chefes de Estado e de governo da União Europeia se reúnem nos dias 28 e 29 deste mês em Bruxelas parra discutir, entre outros temas, a continuidade das sanções contra a Rússia. Tem havido sinais de relaxamento, embora nem todos os países membros concordem, e as decisões são tomadas por consenso.
Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha reconheceu no dia 27 que não está funcionando a abordagem do “tudo ou nada” para forçar a Rússia a cumprir o Acordo de Minsk. Firmado em setembro de 2014, o acordo prevê cessar-fogo e a retirada das forças paramilitares apoiadas pela Rússia no leste da Ucrânia. “Sanções não são um fim em si mesmo, servem para levar a uma solução política”, argumentou Martin Jaeger. Na véspera, na reunião do G-7 no Japão, a chanceler alemã, Angela Merkel, havia dito que era “cedo demais” para levantar as sanções.
De acordo com a revista alemã Der Spiegel, o governo em Berlim estuda remover restrições de viagens para parlamentares russos, reduzir o prazo de renovação das sanções de seis para três meses e mesmo relaxar as punições em troca de apoio russo à realização de eleições no leste da Ucrânia.
A Rússia está realizando uma ofensiva diplomática junto a países considerados mais simpáticos a sua causa, como Áustria, Grécia, Hungria e Itália, informou o jornal International Business Times, de Nova York. Os russos salientam sua importância como parceiros comerciais, fornecedores de gás e petróleo e intermediários na solução para a guerra na Síria. O primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, criticou as sanções durante entrevista coletiva ao lado de Putin no dia 27 em Atenas. O chanceler húngaro, Péter Szijjártó, afirmou, depois de reunião com seu colega russo, Sergei Lavrov, em Budapeste, que as sanções não seriam prorrogadas automaticamente. Noutro sinal de conciliação, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, anunciou que vai participar do Fórum Econômico de São Petersburgo, de 16 a 18 deste mês. Será a primeira visita de uma autoridade europeia à Rússia desde o início da guerra na Ucrânia, em 2014.
Entretanto, a Grã-Bretanha, a Polônia e os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia, ex-repúblicas soviéticas), que tradicionalmente mantêm posições mais duras em relação à Rússia, já afirmaram que as sanções têm de ser mantidas para conter as ambições imperialistas russas. “As opiniões na União Europeia não mudaram, mas o clima está mudando”, definiu Fyodor Lukyanov, diretor do Conselho de Política Externa e de Defesa, de Moscou, que assesora o governo russo. A expectativa é de que as sanções sejam relaxadas a partir do início do ano que vem.
Além da queda do preço do petróleo e das consequências das “ambições imperiais” de Putin, a Rússia é vítima de seu modelo econômico. Tanto que seus problemas são anteriores à queda do preço do petróleo e às sanções — que apenas os agravaram. Em relatório publicado em dezembro de 2012, o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento apontava a corrupção, a regulação excessiva, a falta de proteção dos direitos de propriedade, a falta de concorrência e de abertura e a expansão das estatais como causas da estagnação econômica russa. Intitulado “Diversificando a Rússia”, o relatório, baseado em pesquisas de campo, recomendava a desregulamentação, o aperfeiçoamento do sistema financeiro, a promoção da concorrência e da iniciativa privada e investimentos no capital humano e na inovação.
A Rússia se beneficia de um bom sistema de educação (seu desempenho no Pisa é próximo ao dos EUA), com uma tradição de pesquisas científicas e formação técnica, uma impressionante riqueza mineral, sólos férteis e uma posição geográfica privilegiada de acesso aos mercados da Europa e da Ásia. Seu problema é fundamentalmente político: a estratégia de Putin de permanência no poder. E não há no horizonte uma saída para esse obstáculo. No controle do país há 17 anos, Putin tem eliminado sistematicamente toda a oposição, calado a imprensa e mantido sua popularidade manipulando com maestria os sentimentos de inferioridade e as fantasias de grandeza dos russos. E, se tudo isso falhar, ele ainda tem a sua nova Guarda Nacional, para lembrar quem manda na Rússia.
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