A poucos dias do início das Olimpíadas de inverno, a discussão sobre o doping russo ganha novos capítulos
O mundo é dos espertos. A estratégia do “sou, mas quem não é?” deu certo mais uma vez para a Rússia e o seu presidente, Vladimir Putin. Dois dias depois de ele admitir o uso de substâncias proibidas por parte de atletas russos, o presidente viu esses atletas liberados para participar dos Jogos de Inverno da Coreia do Sul, que começam nessa sexta-feira 9, e vão até o dia 25.
O Tribunal de Arbitragem do Esporte liberou na quinta-feira os 28 atletas russos que haviam sido banidos por doping. Aparentemente eles poderão se juntar aos 169 compatriotas que já haviam recebido o sinal verde, que já garantiam a presença da Rússia nas 15 modalidades dos Jogos de Inverno em Pyeongchang.
Tudo isso, depois de Putin ter admitido a simpatizantes, na terça-feira: “Houve casos de uso de doping, é verdade. Quero que a audiência e o país todo saibam disso. Houve muitos exemplos ao redor do mundo, mas ninguém está fazendo muito escarcéu por causa disso”. Putin chamou de “imbecil” Grigory Rodchenkov, o ex-diretor do laboratório russo de doping, que denunciou a prática sistemática em seu país.
Em entrevista à rede de TV alemã ARD, Rodchenkov acusou Putin de dar a ordem de usar as substâncias: “Claro que veio diretamente de cima, do presidente, porque só ele pode designar o serviço secreto interno, FSB, para uma tarefa tão específica”. Putin foi agente da KGB, e mantém um controle estrito sobre sua sucessora, a FSB.
A crise de credibilidade do esporte russo eclodiu antes dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio. Em novembro de 2015, a Agência Mundial Anti-Doping suspendeu o laboratório dirigido por Rodchenkov, chamado de Centro Anti-Doping, acusando-o de encobrir o uso de substâncias proibidas por cerca de mil atletas.
A delegação russa de atletismo, com 118 membros, foi banida da Olimpíada do Rio. Atletas de outras modalidades puderam participar, com o emblema do Comitê Olímpico Internacional. O mesmo ia acontecer agora em Pyeongchang, mas, com a liberação dos restantes 29, a situação está indefinida.
Depois da suspensão de seu laboratório, Rodchenkov passou a denunciar o esquema, e suas revelações foram a base do Relatório McLaren, de 2016, que demonstrou o envolvimento de mais de mil atletas. Rodchenkov está foragido nos Estados Unidos, onde participa de um programa de proteção de testemunhas, para evitar que tenha o destino de outros antagonistas de Putin. Pesa contra ele na Rússia uma ordem de prisão, por “abuso de poder”.
Relatos de atletas russos mostram que o consumo de substâncias proibidas era parte de seu cotidiano, como algo “natural”. O esforço de obter — a qualquer preço — o maior número possível de medalhas remonta à antiga União Soviética, que inaugurou essa política, depois adotada por outros regimes comunistas, como os do Leste Europeu, da China, da Coreia do Norte e de Cuba, de usar o desempenho no esporte como peça de propaganda.
No poder desde 2000, Putin tem buscado resgatar as glórias do passado soviético, encerrado com a dissolução da URSS, em 1991, que configurou sua derrota na guerra fria para os Estados Unidos e a Europa Ocidental.
A FSB, sucessora da KGB soviética, da qual Putin foi agente na Alemanha Oriental, tem sido o centro gravitacional da estratégia de poder do presidente. Desde sua ascensão ao poder, em 2000, Putin tem entregado a gestão dos negócios mais lucrativos nas antigas empresas estatais, privatizadas, e cargos-chave no governo a ex-colegas do serviço secreto, ou a pessoas de sua confiança.
O doping está para o esporte assim como outras ferramentas de manipulação estão para as demais esferas do poder econômico e político de Putin. Para se perpetuar no poder, ele criou um mundo no qual os resultados são controlados.
No ambiente internacional, o resultado tem sido também o mesmo: a transformação da Rússia num páreo internacional. Mas isso não faz de Putin um perdedor sempre. Ao contrário, ele até que se sai muito bem, trafegando pelas zonas cinzentas.
Exemplo disso é o que tem ocorrido no leste da Ucrânia desde 2014. A Rússia nunca enviou de forma assumida tropas para ocupar a região. Soldados russos se juntaram aos separatistas locais de etnia russa, vestindo o uniforme e usando o equipamento de seu Exército, mas sem identificação. Quando eles eram flagrados, as autoridades russas afirmavam que eram militares em férias, que foram para lá como “voluntários”.
Essas atitudes deixam confusas as autoridades ocidentais, acostumadas com raciocínios cartesianos, em que as coisas ou são ou não são. Essas fronteiras nebulosas os desconcertam, com receio de serem criticados por excesso ou por falta de ação. É por essa brecha que os russos entram.
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