O escritor inglês George Orwell se inspirou no ditador soviético Josef Stalin para criar seu personagem Grande Irmão, no livro 1984. O presidente russo, Vladimir Putin, trabalhou a vida inteira como agente da KGB, o serviço secreto soviético. Nenhum órgão sintetizava melhor a essência de Stalin e de seu regime, dotado da onisciência e da onipresença do Grande Irmão.
Hoje, Putin está se tornando o representante contemporâneo desse personagem. Presente em todos os lugares, o presidente russo se tornou simplesmente impossível de ignorar. E, acrescentariam os opositores russos, de contradizer.
Nesta quinta-feira, mais um desafeto de Putin, o deputado Denis Voronenkov, foi morto em Kiev, capital da Ucrânia, onde se exilara com sua mulher, a também deputada Maria Maksakova. Três dias antes, o deputado deu uma entrevista ao jornal The Washington Post, na qual disse que corria perigo, e só poderia voltar para seu país depois da saída de Putin, no poder desde 2000 — algo que não está no horizonte.
“Para nossa segurança, não podemos deixá-los saber onde estamos”, disse um alarmado Voronenkov, que teve sua conta de Twitter atacada por hackers, recebeu ameaças por mensagens de texto e acreditava estar sendo seguido. “É um sistema totalmente amoral, e em sua raiva ele pode ir a medidas extremas.” Menos de 72 horas depois, ele foi morto com dois tiros na cabeça à luz do dia, no mesmo bar onde concedera a entrevista, por um homem em seguida abatido por seu guarda-costas, fornecido pela polícia ucraniana. Horas mais tarde, o presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, qualificou o ataque de “ato de terrorismo de Estado da Rússia”.
Voronenkov vem se juntar a uma lista crescente de desafetos de Putin eliminados dentro e fora da Rússia. Em 2006, Alexander Litvinenko, ex-agente da FSB, a sucessora da KGB, foi espetacularmente envenenado em Londres com polônio, substância radioativa, que lhe impôs uma morte lenta e dolorosa. Especialista em crime organizado, Litvinenko acusou seus superiores no serviço secreto de executar o empresário Boris Berezovsky, que ousara opor-se a Putin. Em uma investigação não menos espetacular, que envolveu o rastreamento da substância radioativa por Londres, a Scotland Yard provou a autoria de dois agentes russos.
Mais recentemente, o líder oposicionista Boris Nemtsov foi morto a tiros em 2015 por homens que passaram em um carro, a poucos metros do Kremlin, também à luz do dia. Nemtsov liderava manifestações contra o governo. O crime ocorreu no ano anterior às eleições legislativas russas. Em março do ano que vem, a Rússia realiza eleições presidenciais. É um período mais sensível. Putin ainda não confirmou se vai se lançar a um quarto mandato, mas é quase certo que o faça. Ele exerceu dois mandatos de presidente entre 2000 e 2008, quando passou a ser um todo-poderoso primeiro-ministro, e em 2012 voltou à presidência.
A influência de Putin se mede também pela peregrinação de líderes políticos de todas as correntes e regiões do mundo pelo Kremlin. Nesta sexta-feira foi a vez da ultranacionalista Marine Le Pen, que lidera as pesquisas para o primeiro turno da eleição presidencial francesa, no dia 23 de abril. Assim como Donald Trump — que aliás a apoia —, Le Pen manifestou em várias ocasiões admiração por Putin, como um líder forte e nacionalista. “Ele representa uma nação soberana”, disse ela aos jornalistas em Moscou. “Acho que ele representa uma nova visão.”
Le Pen filosofou: “Um novo mundo emergiu nos últimos anos. É o mundo de Vladimir Putin, de Donald Trump nos Estados Unidos, do Sr. (primeiro-ministro Narendra) Modi na Índia. Acho que sou provavelmente quem compartilha com todas essas grandes nações uma visão de cooperação e não de subserviência”, disse ela, criticando o poder centralizador da União Europeia. Ainda na linha de Trump, Le Pen defendeu também o intercâmbio com a Rússia de informações sobre terrorismo.
Assim como aconteceu com as eleições nos Estados Unidos, onde o FBI investiga o envolvimento russo no vazamento de emails da candidata democrata Hillary Clinton e as ligações de vários auxiliares de Trump com o governo de Putin, o presidente russo também já se faz presente na corrida presidencial francesa.
Em mais um escândalo envolvendo o candidato de centro-direita François Fillon, já acusado de remunerar irregularmente com verbas de seu gabinete no Senado sua mulher e filhos, o semanário investigativo Le Canard Enchaîné publicou na quarta-feira 22 que ele recebeu 50.000 dólares do bilionário libanês Fouad Makhzoumi, dono de uma fábrica de oleodutos. Em troca, segundo o jornal, Fillon arranjou um encontro do libanês com Putin em São Petersburgo em junho de 2015.
Fillon foi acusado de receber pagamentos diretamente da Rússia, o que ele nega. No debate dos candidatos no sábado 18, ele comparou a invasão da Crimeia pela Rússia ao apoio ocidental à independência de Kosovo em 2008 — que tomou parte do território da Sérvia, por sua vez aliada da Rússia. Isso não ajudou a afastar as suspeitas.
Atingida por sanções econômicas da União Europeia e dos EUA por causa da anexação da Crimeia e do apoio a separatistas russos no leste da Ucrânia, a Rússia procura diversificar seus mercados e parcerias. Num movimento que lembra o apoio da antiga União Soviética ao Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, na luta contra o apartheid, Putin se aproximou do presidente sul-africano, Jacob Zuma. Algumas semanas depois de Zuma passar seis dias de férias na Rússia, em 2014, e reunir-se com Putin, a Rosatom entrou na disputa pela venda de centrais nucleares para a África do Sul. A cooperação nas áreas de inteligência e defesa também se intensificou. Há informações de que agentes secretos e pilotos sul-africanos estão recebendo treinamento russo. A partir do dia 30, não serão mais necessários vistos para visitas de até 90 dias entre cidadãos dos dois países.
Mas em nenhuma região como o Oriente Médio e o Norte da África (conhecida pela sigla Mena) a Rússia tem buscado mais influência. O exemplo mais visível é a Síria, onde as Forças Armadas russas apoiam o regime de Bashar Assad. Numa expansão de seus alinhamentos, recentemente a Rússia criou uma base na Síria para treinar combatentes da milícia curda YPG, aliada dos EUA.
Putin aproveitou de forma magistral o vácuo criado na região pelo recuo do ex-presidente Barack Obama de sua ameaça de punir a Síria se ela utilizasse armas químicas contra sua própria população. Ela fez isso em agosto de 2013 e nada aconteceu, porque Obama já temia naquele momento que o país caísse nas mãos de extremistas islâmicos.
Entretanto, “a estratégia é mais ampla do que apenas a Síria”, analisa Andrei Kortunov, do Conselho Russo de Assuntos Internacionais, em Moscou. O primeiro-ministro Fayez al-Sarraj, chefe do governo líbio reconhecido pela ONU, visitou Putin este mês em Moscou. No ano passado, o marechal rebelde Khalifa Haftar esteve duas vezes na capital russa.
Os EUA e seus aliados temem que a Rússia queira colocar no poder Haftar, um líder secular (não-islâmico), perfil preferido de Putin para a região. Funcionários americanos afirmam que forças especiais russas foram flagradas na região de Sidi Barrani, no Egito, perto da fronteira com a Líbia. A Rússia nega. A estatal do petróleo russa Rosneft assinou um memorando de cooperação com a NOC, sua equivalente na Líbia.
A peregrinação de líderes da região a Moscou somente este ano inclui o rei Abdullah, da Jordânia, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Putin tem tentado influir numa eventual e difícil negociação de paz entre palestinos e israelenses. Também desenvolve uma boa relação com o presidente do Egito, marechal Abdel Fattah Sisi, que subsitituiu o governo da Irmandade Muçulmana, em 2013, com um golpe militar seguido de eleições.
Diferentemente dos Estados Unidos e da União Europeia, que frequentemente assumem lados, a Rússia tem conseguido manter boas relações e até parcerias com rivais regionais. Assim, é aliada do Irã na defesa do regime sírio. Ao mesmo tempo, negociou com a Arábia Saudita o corte nas exportações de petróleo da Opep — contra o qual o Irã, seu arqui-rival, opunha-se. A Rússia atraiu investimentos do Catar no ano passado para a Rosneft. Os Emirados Árabes Unidos pretendem comprar caças Sukhoi.
Assim como americanos e europeus, os russos veem o Oriente Médio como um tabuleiro central no mundo. “Quem tiver posições fortes lá terá posições fortes no mundo”, constata Fyodor Lukyanov, do Conselho de Política Externa e de Defesa, órgão de assessoria do governo russo. “Gostemos ou não, agora não se pode mais atuar no Oriente Médio sem falar com a Rússia”, reconheceu um diplomata ocidental à revista The Economist.
Entretanto, um ex-embaixador russo admitiu à revista britânica: “Somos realistas, sabemos comparar dados. A economia da Rússia é um décimo da americana e os gastos russos com defesa representam 11% dos EUA”. Exatamente por isso, a Rússia recorre também a táticas da guerra assimétrica. Nesse vale-tudo, servem tanto ataques cibernéticos quanto execuções de opositores onde quer que tenham ido se refugiar.
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