Com popularidade de 80%, presidente russo poderá completar 25 anos no Kremlin e ficar a 4 do líder soviético; passado comunista e caos na transição para capitalismo ajudam a consolidar sua imagem de único líder capaz de manter a estabilidade do país
MOSCOU – Na fria manhã de domingo passado, o Centro Cultural 131 – que, assim como as escolas, mantém seu impessoal nome da antiga União Soviética – estava agitado. No teatro, crianças ensaiam a peça infantil Lembrança do Futuro. No corredor, um entra e sai para as oficinas, cursos e biblioteca. Em sua sala ampla, a diretora da biblioteca conversa com uma professora de música sobre a eleição presidencial deste domingo, 17. Elas divergem.
A diretora, Irina Krylova, de 55 anos, vai votar no presidente Vladimir Putin, no poder desde 2000. A professora da escola pública do bairro, Liudmila Khrustaleva, também de 55 anos, prefere o candidato do Partido Comunista, Pavel Grudinin.
“Putin é um líder forte, e hoje em dia, infelizmente, na vida política russa, não há líderes tão fortes”, justifica Krylova. “Ninguém pode oferecer algo melhor do que Putin.” A diretora continua, repetindo uma visão predominante entre os russos. “Putin transformou a Rússia em um país que os outros têm de respeitar, gostando ou não de sua política externa.”
Ao apontar a recuperação do prestígio russo antes de falar das condições de vida no país, Krylova representa a maioria dos eleitores, conforme as pesquisas do Levada Center, o mais respeitado instituto independente na Rússia. “O sentimento de orgulho nacional é mais forte do que considerações sobre a vida econômica”, disse ao Estado o diretor de pesquisas socioculturais do Levada, Alexei Levinson.
A última sondagem do instituto, realizada entre 7 e 12 de março, aponta aprovação de 80% para o presidente. As pesquisas de intenção de voto dos vários institutos dão entre 65% e 70% para Putin. Em segundo lugar, vem o nacionalista Vladimir Jirinovski, com cerca de 16%; seguido pelo comunista Grudinin (10%) e 2% tanto para o economista liberal Grigori Yavlinski quanto para a também liberal apresentadora de TV Ksenia Sobchak.
À pergunta sobre se a vida melhorou em relação a quando Putin chegou ao poder, Krylova responde: “Em comparação com 20 anos atrás, a situação econômica melhorou muito”. A diretora da biblioteca exemplifica: “Agora, quase toda família na Rússia pode comprar um carro. Outra mudança importante é que agora os casais querem ter filhos. Nos anos 90, a taxa de natalidade caiu e a população diminuiu. Agora, os russos não têm medo de ter filhos, de educá-los. Isso é um sinal de que a situação está melhorando.”
Krylova lembra que “o povo não estava tão seguro há 20 anos, como na época da União Soviética”. Essa é a outra referência dos russos, sobretudo os mais velhos, que representam a maior parte do eleitorado: a memória de uma vida estável, ainda que com poucos luxos, na antiga URSS, dissolvida em 1991.
A década de 90, com a brusca introdução do capitalismo e da democracia, é conhecida como o tempo do “caos”. O trabalho, a moradia, o consumo, as leis, tudo mudou da noite para o dia e muitos não sabiam o que fazer para sobreviver.
A maioria associa mudança a trauma. Não é para menos: a mudança anterior fora a Revolução Russa de 1917, com seus milhões de mortos e sua igualmente drástica troca de sistema. Putin representa, para seus eleitores, a estabilidade. Outros a buscam no próprio passado soviético, quando ela estava acompanhada de um Estado mais protetor.
É o caso dos eleitores de Grudinin, como Khrustaleva. “Eu queria muito que as coisas positivas da União Soviética voltassem”, afirma a professora. “Podíamos andar pelas ruas à noite sem medo. Queria que meus filhos e netos recebessem educação gratuita, assim como assistência médica. Pudessem entrar no hospital sem medo de não serem atendidos.”
Os professores da rede pública recebem 45 mil rublos (US$ 900) em Moscou. É o valor do aluguel de um apartamento. No interior, há professores ganhando 7 mil rublos (US$ 140). “O salário na época da União Soviética não era bom, mas muita coisa, como educação e saúde, era gratuita”, recorda Khrustaleva. “Havia muitos privilégios para os professores.” Quando saiu do conservatório e começou a trabalhar, em 1983, seu salário era 110 rublos, “suficiente para sobreviver naquele tempo”.
Situado no bairro pobre de Marina, em Moscou, habitado por imigrantes armênios, tártaros e cazaques, o centro cultural é uma importante opção de lazer.
Do lado de fora, na calçada coberta de neve, Vitali, de 34 anos, que pediu para não publicar seu sobrenome, vendia bolsas sobre uma mesa dobrável, na frente de sua perua Lada. Ele vai votar em Jirinovski, candidato a presidente pela sexta vez (de 1991 para cá, só não disputou em 2004).
“Sempre votei nele porque gosto dele”, resume o vendedor, que ganha cerca de 50 mil rublos (US$ 1.000) por mês. “Ele sempre promete coisas boas para o povo. Gostaria que ele colocasse tudo em ordem.”
Todos os candidatos têm fragilidades que os tornam inofensivos perante Putin. Jirinovski tem um estilo bufão e ideias extremistas. Grudinin, milionário produtor de morangos, acusado de ter propriedades no exterior, é rejeitado até em seu partido como “burguês”. Ksenia é filha de Anatoli Sobchak, falecido ex-prefeito de São Petersburgo, que foi professor de Putin na Faculdade de Direito e lhe deu o primeiro cargo público. Ela evita atacar o presidente e suas pautas são consideradas “ocidentais demais”, como a defesa dos direitos dos homossexuais. Yavlinski foi autor do plano de liberalização da economia dos anos 90 e está associado ao “caos”.
Ao longo dos anos, Putin, ex-agente secreto da KGB e diretor de sua sucessora, a FSB, foi eliminando seus oponentes sérios. Uns tiveram mortes não esclarecidas, outros se exilaram, outros estão inelegíveis por condenações na Justiça, como o advogado Alexei Navalni, que dirige uma ONG dedicada a combater a corrupção. Para completar, a mídia é fortemente controlada.
Putin deve se eleger neste domingo para mais seis anos de mandato. A lei o impede de se candidatar novamente, mas ela já foi modificada para mantê-lo no poder. Em 2024, ele terá 71 anos. Só o futuro dirá se aceitará deixar o poder. Por enquanto, a “lembrança do futuro”, parafraseando a peça infantil, é uma projeção do passado.
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