Crise no país vizinho teve destaque no encontro entre os dois presidentes
KIEV – O presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem que é preciso que a Argentina “estabilize sua situação política” para que apresente à população e aos países vizinhos “um plano econômico credível”. Acrescentou que não se pode “pedir mais que isto neste momento” do país. A declaração foi feita durante entrevista coletiva ao lado do presidente da Ucrânia, Leonid Kuchma, depois da assinatura de nove documentos.
Fernando Henrique contou que conversou “longamente” com Kuchma sobre a Argentina. “Não há quem não esteja preocupado e torcendo” para que a Argentina saia da crise, declarou o presidente, recebido por Kuchma no Palácio Maryinski, a residência presidencial, uma bela edificação de dois andares, paredes verde-água e decoração no estilo dos palácios franceses, projetado pelo arquiteto italiano Rastrelli, o mesmo de várias construções em São Petersburgo, na Rússia.
Além de uma declaração conjunta sobre o aprofundamento das relações, foram assinados acordos sobre a participação da Ucrânia em lançamentos de foguetes da base espacial de Alcântara, com transferência de tecnologia; de cooperação no setor de energia e para a fabricação, em conjunto, de máquinas para o setor elétrico; cooperação na área de petróleo e gás; um acordo de extradição; uma convenção para evitar a dupla tributação e um convênio entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Ukreximbank, o banco ucraniano de fomento às exportações.
Na declaração conjunta, o Brasil promete “colaborar nos assuntos relacionados ao ingresso da Ucrânia na Organização Mundial do Comércio (OMC) e no G-20”, que inclui os principais países emergentes. Ela destaca cinco focos de interesses bilaterais: energia, indústria espacial, aeronáutica, mineração e telecomunicações.
O discurso adotado por Fernando Henrique na Rússia, em favor de um mundo multipolar, com o papel do Conselho de Segurança da ONU robustecido, ganhou nova nuance na Ucrânia. Os dois se apresentaram como países que “seguem o próprio caminho e a própria razão”, no dizer de Kuchma, ou que “se integram no mundo contemporâneo guardando características próprias”, segundo Fernando Henrique.
O conceito busca uma identificação entre um Brasil que luta para se soltar da zona de influência americana, ganhando peso específico na região, e uma Ucrânia que atravessa, há uma década, um processo ainda mais delicado de liberação da hegemonia russa. É uma aproximação curiosa, de dois povos ostensivamente exóticos um para o outro.
Fernando Henrique, que desembarcou às 10h20 (6h20 de Brasília) no aeroporto de Kiev, sob um frio de 6 graus negativos e uma neve fina, foi recebido por rapazes e moças com coloridas roupas folclóricas. Serviram-lhe pão para mergulhar no sal e comer, em gesto de hospitalidade. Sete crianças ucranianas que receberam, em Curitiba, tratamento contra a radiação da usina de Chernobyl, deram flores à primeira-dama, Ruth Cardoso, e à mulher do chanceler Celso Lafer, Mary.
Seguiram diretamente para o palácio, em cujos jardins esperava a guarda de honra presidencial, com seus chapkas (chapéus de pele) esverdeados. Quando Fernando Henrique entrou no jardim, o ar gélido foi cortado pelos acordes tropicais do hino brasileiro.
Nos corredores dos locais dos encontros, diplomatas, políticos e empresários franziam a testa tentando lembrar ou pronunciar os nomes de pessoas, firmas e instituições com que tiveram contato, enquanto expunham os pontos de interesses comuns, surpreendentemente numerosos.
O presidente brasileiro destacou, por exemplo, que a Ucrânia pode ajudar o País a ampliar sua matriz energética, não só pela venda de petróleo e gás, mas, também, pela transferência de tecnologia para usinas brasileiras. Do seu lado, Kuchma salientou que o Brasil é “líder reconhecido” na exploração de petróleo em águas profundas, e convidou “empresas brasileiras” a atuar nos mares Negro e Azov.
À pergunta sobre os efeitos práticos dos acordos, Kuchma, ex-comunista como tudo e todos na Ucrânia, disse que não poderia haver nada mais concreto do que os empregos que o comércio e as joint ventures podem criar para ambos.
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