Esam el-Erian, líder da Irmandade Muçulmana, fala ao ‘Estado’ sobre a visão do grupo de um Egito democático
CAIRO – Numa cidade em que raramente se marca um compromisso de manhã, e quase tudo acontece à tarde e à noite, Esam El-Erian chega pontualmente para a entrevista às 9h30, no escritório da Irmandade Muçulmana no bairro de classe média de Manial, região central do Cairo. “Esqueci que era feriado”, sorri ele, lembrando que ontem foi o aniversário do Profeta Maomé – distração curiosa para um religioso. “Deve ser um bom sinal.” Nesses dias revolucionários, tudo o que a Irmandade quer evitar é a pecha de religiosa, e o esforço é visível na entrevista ao Estado.
“Somos o espantalho do mundo”, diz El-Erian, médico e teólogo, membro do Diretório Executivo da Irmandade Muçulmana e um de seus principais porta-vozes. “Querem nos demonizar, como fundamentalistas islâmicos. Queremos parar esse jogo infantil, explorado por Mubarak.” É por isso, explica ele, que a Irmandade não terá candidato próprio à presidência nem buscará maioria no Parlamento. El-Erian, de 57 anos, 8 deles passados na prisão sob o regime de Hosni Mubarak, derrubado na sexta-feira depois de 18 dias de protestos populares, garante que a Irmandade não tem uma agenda própria para o país, e que não imporá os preceitos do Islã a seus cidadãos.
Mas mantém sua posição crítica em relação aos Estados Unidos: “Espero que todos os aliados dos EUA tenham aprendido a lição de que os americanos não podem protegê-los da fúria do povo.” El-Erian se nega a discutir a posição da Irmandade em relação a Israel e ao grupo fundamentalista palestino Hamas: “Não somos guardiães de Israel. Ele pode se proteger sozinho.”
Os militares já entraram em contato com vocês?
Até agora, não.
Vocês acham que eles deveriam?
Claro que sim, não só conosco, mas com todas as facções políticas. O país não está sob o governo deles apenas. O país é nosso também.
A Irmandade Muçulmana tem historicamente uma relação conflituosa com as Forças Armadas. Essa relação mudou?
O conflito acabou em 1954 (quando o grupo foi banido). Daquele momento em diante, a Irmandade Muçulmana foi para as prisões, o Exército foi para os quartéis e (os presidentes) Gamal Abdel Nasser (1956-70), Anwar Sadat (1970-81) e Hosni Mubarak ficaram sozinhos.
O sr. quer dizer que esses presidentes despolitizaram as Forças Armadas?
Eu espero que elas não estejam politizadas. Nasser cometeu erros fatais, mas um de seus acertos foi manter o Exército longe da política.
Que erros ele cometeu?
Eu não vou falar dos erros de Nasser agora que estamos com boas relações com os nasseristas (que participaram do movimento que derrubou Mubarak). Não quero atrapalhar. Mas o erro mais conhecido foi justamente não ter criado um Estado democrático estável. Com isso todos concordam hoje, incluindo os nasseristas.
Nesta transição, vocês acham que primeiro deve-se realizar eleições para o Parlamento?
Essa é a nossa prioridade, embora tudo tenha de ser discutido para se buscar consenso. Para nós o principal objetivo agora é transferir o poder para o povo. Se houver eleição para presidente antes do Parlamento, e antes da redação de uma nova Constituição, o poder será transferido para um homem. O Parlamento representa todos. Claro que é preciso garantir todos os direitos civis e políticos antes de realizar as eleições.
Vocês estão criando um partido político?
Sim. Como você sabe, não podíamos ter um partido no tempo de Mubarak. Agora teremos.
Vocês anunciaram que não terão candidato próprio a presidente. Por quê?
Veja, somos o espantalho do mundo. Querem nos demonizar, como fundamentalistas islâmicos. Queremos parar esse jogo infantil, explorado por Mubarak.
Quem vocês apoiarão então para presidente?
Vamos examinar as propostas e os currículos de todos os candidatos. O ideal seria que todas as forças da oposição se unissem em torno de um único candidato. Vamos trabalhar para obter esse consenso. O povo egípcio está pronto para a democracia, mas precisa treinar um pouco. Seria o caos se na primeira eleição presidencial livre houvesse 20 candidatos. Estamos firmando três compromissos: não apresentar candidato próprio à presidência, não almejar a maioria no Parlamento e nem postular ministérios no futuro governo. Claro que, se formos convidados, vamos discutir.
Qual é a agenda de vocês para o país? É introduzir um regime islâmico?
Não temos nenhuma agenda a priori para o país. Os problemas devem ser examinados de forma concreta, conforme vão surgindo. Todos os dias aparecem nos jornais coisas escandalosas do regime anterior, que não sabíamos. É vergonhoso. Falar de introduzir um regime islâmico é bobagem, porque o Egito já é um país muçulmano há mais de mil anos, assim como há cristãos aqui e houve judeus também. Todos viveram juntos aqui ao longo de toda a História. Houve uma campanha de difamação contra a Irmandade Muçulmana neste país ao longo de décadas. Durante a Revolução (que derrubou Mubarak), as pessoas descobriram que era tudo falso. Espero que no seu país também saibam disso.
Vocês imporão a Sharia (Justiça islâmica), a barba, o véu e a proibição do álcool?
Essas coisas se resolvem na vida cotidiana. A Arábia Saudita e o Irã obrigam as mulheres a se cobrir com o véu, e elas fazem isso sob pressão. Aqui no Egito, a maioria das mulheres muçulmanas usa o véu porque quer, contra a vontade de Suzanne (Mubarak, a ex-primeira-dama). Ninguém pode obrigar ninguém a seguir uma religião. Tem de ser espontâneo.
Como seriam as relações com Israel num governo da Irmandade Muçulmana?
Venha me fazer essa pergunta quando esse dia chegar. Talvez não exista mais Irmandade Muçulmana ou talvez não exista mais Israel.
O que vocês acham do (grupo fundamentalista palestino) Hamas?
Pergunte ao Hamas.
Estou perguntando o que vocês acham dele.
Nossa questão agora é construir nosso país, conquistar a democracia. Não somos guardiães de Israel. Israel é capaz de se defender muito bem sozinho.
O que vocês acham dos atentados suicidas?
Veja, não respondo a essas questões agora, porque estão tentando propagandear que o Irã e o Hamas estiveram por trás da Revolução. E isso é mentira.
Como devem ficar as relações do Egito com os Estados Unidos?
Os EUA são a potência mais importante do mundo e querem que todos os obedeçam. Isso precisa mudar. Espero que todos os aliados dos EUA tenham aprendido a lição de que os americanos não podem protegê-los da fúria do povo. Não podemos ser escravos dos EUA. Somos iguais. Fizemos a Revolução graças aos nossos próprios esforços e a Alá apenas. Todas as tentativas dos americanos de criar democracia fracassaram, como no Afeganistão e no Iraque. Qualquer um que busca a proteção dos EUA destrói sua própria imagem perante seu povo.
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