Disputa está polarizada entre islâmicos e seculares
CAIRO – Na primeira eleição depois de 30 anos da ditadura de Hosni Mubarak, os egípcios formaram longas filas na porta dos locais de votação, em muitos casos com espera de horas. Embora o voto não seja obrigatório e fosse um dia normal de trabalho no país, os eleitores compareceram maciçamente na votação para o Parlamento, que prossegue hoje no Cairo e noutros oito Estados do país.
O dia transcorreu sem grandes incidentes, apesar da ocupação da Praça Tahrir por manifestantes que exigem a renúncia da junta militar que governa o país, de mudanças na distribuição das zonas eleitorais e da desconfiança por parte de muitos eleitores em relação à Justiça eleitoral, herdada do regime de Mubarak.
A eleição está polarizada entre islâmicos e seculares. De um lado, a Irmandade Muçulmana, o grupo mais bem organizado e com maior credibilidade que restou do antigo conjunto de partidos, aliado do Al-Nur (“A Luz”), novo partido salafista (islâmico radical). No outro extremo, estão os seculares do Bloco Egípcio, que reúne três partidos liberais, e da Aliança Completando a Revolução, composta por grupos de jovens e socialistas.
“Vou votar no Partido Liberdade e Justiça (da Irmandade Muçulmana), porque tem perfil religioso, não extremista”, disse uma mulher de 24 anos usando o niqab, a vestimenta preta que deixa só os olhos de fora. “Em 2005 e 2010 eles tiveram algum sucesso sob um regime muito duro”, continuou a mulher, que esperava na fila de mais de 1.500 pessoas numa escola do bairro de classe média alta de Zamalek. “Acredito que dessa vez poderão fazer mais”, acrescentou, pedindo para não ser identificada. “Eles construirão um país sobre um alicerce religioso. Não forçarão ninguém a fazer nada mas protegerão a religião do país.”
Sherif Hisham, de 23 anos, empregado em uma multinacional, não acredita nessa promessa. “Não quero que este país se torne uma Arábia Saudita, dominada por homens de túnicas e barba”, disse Hisham, que aguardou durante horas na mesma fila. “Temos 10% de cristãos. Não sou cristão, mas somos um povo só”, prosseguiu ele. “A religião deveria ser algo entre você e Deus, não uma imposição, não misturada com política.”
Ele votou no secular Partido dos Egípcios Livres. “Espero que diminuam a pobreza, melhorem a infra-estrutura e os serviços sociais, os direitos das mulheres e das crianças e a educação. O sistema de Mubarak era completamente corrupto.”
Longe dali, no bairro pobre de Sharabeia, periferia norte do Cairo, o desempregado Kamal Sayed, de 27 anos, votou no Partido Liberdade e Justiça, mas não por razões religiosas: “Eles prometeram liberdade, justiça social e empregos para os jovens.”
Em Zamalek, o empresário Sherif Yehia, de 37 anos, fez uma combinação entre islâmicos e liberais. Como há um voto por lista partidária e outro em candidatos individuais, no primeiro ele escolheu o Liberdade e Justiça e no outro, um integrante do Bloco Egípcio. “A Irmandade Muçulmana é o grupo mais bem organizado e precisamos de estabilidade”, explicou Yehia, diretor do setor de calçados na Câmara de Comércio do Cairo. “A Irmandade Muçulmana tem atuado sob pressão desde sempre. Acho que agora que a pressão foi retirada eles poderão fazer muito mais e mudar de comportamento. Equilibrei meu voto com o Bloco Egípcio.”
De volta a Sharabeia, o cabeleireiro Osama Nabil, de 29 anos, contou ter anulado seu voto. “Não confio no sistema eleitoral”, disse ele. “A Justiça é a mesma da época de Mubarak. Tudo está muito obscuro. Tudo caminhou na direção errada.” Com o braço direito enfaixado, Nabil contou que levou um tiro da polícia com uma bala de 9 mm na semana passada, na Rua Mohamed Mahmud, que liga a Praça Tahrir ao Ministério do Interior, epicentro dos confrontos.
Depois desses dois dias, as eleições para a Assembleia Popular, como é chamada a Câmara dos Deputados, continuarão em outros dois conjuntos de Estados, terminando no dia 3 de janeiro. A partir daí começará a eleição para o Conselho da Shura, equivalente ao Senado, que terminará em março.
A Câmara dos Deputados nomeará os 100 integrantes de uma assembleia que vai elaborar a nova Constituição. Cedendo às pressões dos manifestantes, a junta militar prometeu eleição presidencial para até o fim de junho. Antes, elas ocorreriam no fim de 2012 ou em 2013.
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